quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Meu nome não é Lúcifer.

Satanás vive dando entrevistas nas igrejas[1] por aí. Penso que uma das coisas que ele deveria falar é: Parem de me chamar de Lúcifer! Se bem que para o “peludo”[2], quanto mais ignorante o povo for a seu respeito, melhor, como bem frisa CS Lewis em seu magnífico livro[3] Cartas de um diabo ao seu aprendiz (Martins Fontes).

Na mente evangélica é automático associar o nome Lúcifer à Satanás, isso é aceito como verdade inquestionável. Porém, nem sempre foi assim na história da igreja. Até o século IV um bispo cristão ainda podia chamar-se São Lúcifer e seus seguidores de luciferianos. Somente quando alguns Pais da Igreja começaram a interpretar Is 14.12 como sendo o relato da queda de Satanás, que essa associação aconteceu e Lúcifer passou a ser nome do diabo.[4]

A palavra lúcifer foi introduzida no texto de Is 14.12, por ser a tradução latina da palavra hebraica hêlel, que significa “portador da luz” ou “estrela da manhã”. Era o nome latino para o planeta Vênus, o objeto mais brilhante no céu depois do sol e da lua, que algumas vezes aparece de noite, outras vezes pela manhã.[5]

O texto de Is 14 em seu contexto, em nenhum momento sugere a queda de um ser angelical. É explicitamente um oráculo contra o rei da Babilônia (v. 4), um ser humano que queria ser igual a Deus.[6] O título dado ao rei, Estrela d`alva, ou estrela da manhã, é de ascendência mítica em literaturas antigas, e “aplicado ao rei de Babilônia equivale a título divino”.[7] Título aplicado de forma pejorativa, pois o rei babilônico, com sua glória e pomposidade, se considerava entre os deuses.[8] Mas a profecia coloca o rei em seu devido lugar a partir do versículo 15. Leia o texto, vai ajudar a entender melhor a reflexão, clique aqui.

Oropeza afirma: “O rei da Babilônia, não Satanás, está em foco, porque ‘subjuga as nações’ (Is 14.12). É difícil ver como Satanás poderia subjugar nações inteiras em sua queda original, quando elas ainda nem existiam”.[9]

O fato é que, não se encontra amparo nem no Novo Testamento nem nos escritos dos pais apostólicos[10] nenhuma afirmação de que Satanás uma vez foi um belo anjo chamado Lúcifer. Como já dissemos acima, foi a partir do séc. III, com Orígenes, que essa associação começou e nunca parou. Contudo, uma exegese honesta com o texto bíblico não pode cometer esse erro. Dizer que Lúcifer é Satanás é ser arbitrário na escolha dos versículos. É ler o texto isolado de seu contexto, acreditando que ele contém uma verdade escondida, mais espiritual. É querer fazer o texto falar algo que ele não quer falar! Não é dessa forma que se lê e interpreta a Bíblia. Eu não posso escolher dois ou três versículos bíblicos, isola-los e dizer que eles querem dizer tal coisa.

O texto de Is 14 sempre é comparado com Ez 28:11-19. Não iremos entrar em detalhes agora, mas os mesmos princípios aplicados em Isaías servem para Ezequiel. Só deixo de tira gosto o v. 2 do cap. 28 “"Filho do homem, diga ao governante de Tiro: Assim diz o Soberano, o Senhor: "No orgulho do seu coração você diz: 'Sou um deus; sento-me no trono de um deus no coração dos mares'. Mas você é um homem, e não um deus, embora se considere tão sábio quanto Deus”.

Podem perguntar: “se esses textos bíblicos não falam da queda de Satanás, onde fala?” A bíblia não relata com clareza a queda de Satanás, pois ele não é seu foco, assim como os anjos, é assunto marginal. Calvino afirma: “Murmuram alguns por que a Escritura não expõe, sistematicamente e distintamente, em muitas passagens, essa queda e sua causa, modo, tempo e natureza. Mas uma vez que essas coisas nada têm a ver conosco, lhe pareceu melhor, ou não dizer absolutamente nada, ou que fossem apenas tocadas de leve, pois não foi digno do Espírito Santo alimentar-nos a curiosidade com histórias fúteis, destituídas de proveito. E vemos ter sido este o propósito do Senhor: nada ensinar em seus sagrados oráculos que não aprendêssemos para nossa edificação”. As Institutas I 14.16.

Só enfatizo que com esse texto não estou negando a existência ou queda de Satanás, estou apenas dizendo que não temos amparo exegético seguro para chama-lo de Lúcifer. Satanás tem muitos nomes, mas não Lúcifer. Aliás, se tem alguém na bíblia, digno de receber esse nome, é o próprio Cristo, ele sim, é a verdadeira Estrela da Manhã (Ap. 22.16).[11]

Ficou claro? Caso não, use os comentários para postar a sua dúvida. Vamos caminhar juntos!

Rodrigo "Bibo" de Aquino é autor do livro Rascunhos da Alma e faz o podcast do portal http://www.formulados.com.br/
--------------------------------------------------------------------------------

[1] As entrevistas com o demônio começaram no Brasil, com intensidade, a partir da década de sessenta com a Igreja Deus é Amor e ganhou força nacional com as igrejas neopentecostais (pseudo-pentecostais para alguns teóricos como Robinson Cavalcante).
[2] A palavra hebraica seirim é traduzida em algumas versões (como a NVI) como “ídolos bodes”. Na tradição hebraica os seirim eram chamados “peludos”, uma referência a espíritos malignos.
[3] Algum livro do Lewis não é magnífico?
[4] CROSS, F. L.; LIVINGSTONE, E. A. (org) In: OROPEZA, B. J. 99 perguntas sobre anjos, demônios e batalha espiritual. São Paulo: Mundo Cristão, 2000. p. 85.
[5] D.H.W. Lúcifer In: DOUGLAS, J.D. (org) Novo dicionário da bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 967.
[6] Algo bem típico da raça humana desde Adão!
[7] SCHÖKEL, L. A.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I Isaías – Jeremias. São Paulo: Paulus, 1988. p. 181.
[8] D.H.W. Lúcifer In: DOUGLAS, J.D. (org) Novo dicionário da bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 967.
[9] OROPEZA, B. J. 99 perguntas sobre anjos, demônios e batalha espiritual. São Paulo: Mundo Cristão, 2000. p. 85.
[10] Homens que preservaram a doutrina dos apóstolos no segundo século da era cristã.
[11] D.H.W. Lúcifer In: DOUGLAS, J.D. (org) Novo dicionário da bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 967.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Teologia da Cruz

Por Fernando Albano

No Evangelho de Marcos observamos uma verdadeira teologia da cruz. Há uma notável identificação de Deus com a fraqueza e miséria humana. O Messias é alguém que sofre na cruz (Mc 9.9-10; 15.39), portanto, é um servo sofredor; algo paradoxal para a figura do Messias triunfante e poderoso conforme entendida pelo Judaísmo da época (Is 53.1-7). Nesse sentido, a teologia da cruz em Marcos fundamenta-se na identificação divina com o sofrimento humano. O amor e a justiça de Deus conduzem Jesus à cruz. É na cruz que ocorre a maior revelação de Deus: o pecado é apresentado como algo terrível que resultou na morte do Filho e, além, disso ficou comprovado o amor de Deus. “Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8).

Em tempos de confusão doutrinária e igrejas-empresas, comprometidas com a conhecida “Teologia da Prosperidade”, parece-nos salutar atentar para a realidade dura e crua, como Marcos nos apresenta a revelação de Deus. Deus não se revela plenamente por intermédio de bênção e milagres, mas sim na terrível cruz.

Vale considerar que, se o Filho de Deus obteve fim tão trágico, ainda que tenha sido por nossos pecados, o que não poderá suceder aos seus discípulos? “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa e pelo evangelho, a salvará” (Mc 8.34-35).

Marcos enfatiza a morte de Jesus em boa parte de seu evangelho. Mais ou menos um quinto do seu conteúdo é dedicado à morte e ressurreição de Cristo (1). Marcos não deixa dúvidas de que a cruz é central em seu livro. E, como vimos esta morte de Jesus tem implicações para o discipulado cristão, especialmente no que tange a morte do nosso ego. Contudo, não foi apenas para se identificar conosco e nos dar exemplo, que Cristo assumiu a condição humana e morreu, mas principalmente para expiar (2) a nossa culpa. De acordo com Marcos, o pecado da humanidade foi o principal motivo da morte e ressurreição de Jesus Cristo (Mc 8.31; 14.31).

A morte de Jesus não ocorreu apenas por que ele atacou as estruturas religiosas da época; por que em sua vida demonstrou aspectos revolucionários que teriam motivado o desfavor do império romano, resultando em sua condenação à morte. Estes aspectos, apesar de serem verdadeiros não constituem o motivo central da morte de Jesus. Acima de tudo sua paixão cumpre com o desígnio redentor de Deus. Sua morte tem efeito vicário, isto é, Cristo morreu em lugar do pecador, segundo o desígnio de Deus.

Infelizmente, há teólogos que negam a necessidade da morte de Jesus para a efetivação da reconciliação. Ensinam que Jesus não teve que morrer para que Deus pudesse perdoar os homens. Deste modo, minimizam o conceito de “ira de Deus”, claramente exarado nas Escrituras (Rm 1.18; Mt 23.33; Jd 14,15).

Para Marcos a morte de Jesus não era comum. No Calvário aconteceu algo significativo para a humanidade. Além de Jesus morrer em lugar do ser humano pecador, sua morte tem um caráter de resgate: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (10.45). Segundo Morris:

Resgate era o termo relacionado com o preço pago para libertar um prisioneiro de guerra, um escravo ou alguém sentenciado à morte. Ele não diz do que está libertando as pessoas, mas, no contexto deste evangelho, claramente se trata de liberdade do pecado e de uma vida pecaminosa. Essa liberdade não vem de modo fácil ou automático. Ela tem um preço, e Jesus pagou esse preço. (3)

De acordo com o evangelista, este resgate está intimamente ligado ao ato de Jesus beber do “cálice”, que representa o sofrimento da punição retributiva (14.36). Isto de conformidade à vontade de Deus. Na última ceia, Jesus deixou bem claro, que o pão e o cálice representam o seu corpo e sangue que seria “derramado em favor de muitos” (12.22-24) (4). Deste modo, parece irrefutável que Marcos defende a ideia de que a morte de Jesus não foi algo acidental, mas realização do propósito de Deus e, que o próprio Jesus estava consciente disto. Convém destacar que Paulo, o primeiro teólogo da Igreja primitiva já defendia tais conceitos (1 Co 15.3-4) (5). Definitivamente Jesus pagou o preço do resgate da humanidade, e, isso faz parte do propósito de Deus. (6)

Para a Igreja primitiva, a interpretação da cruz como fazendo parte do projeto de Deus foi de fundamental importância para acreditar em Jesus ressuscitado. Não há dúvidas de que as comunidades cristãs entenderam a morte de Jesus na cruz como mediação para reconciliar a humanidade com Deus (Rm 5.6,10; 14,15; 1 Co 8.11; 2 Co 5.18-19), libertando-nos da lei (Gl 3.13). A teologia de Marcos vai nesta direção, de tal modo, que pode perfeitamente ser denominada de “teologia da cruz”.

Isto posto, hoje, as igrejas comprometidas com a Bíblia devem alçar a bandeira da “teologia da cruz”, e seguir pregando o Evangelho que cura, liberta, abençoa, mas que também chama para a renúncia, morte do ego, enfim para a cruz.
________
1 - MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. p. 117.
2 - Expiação em sentido religioso, como era compreendida em todo o mundo antigo, pressupõe que o mundo está sujeito a uma ordem cuja não observância é castigada pelos poderes supra-mundanos. Somente a expiação, portanto, pode romper uma reação em cadeia de pecado e desgraça.GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Teológica, 2003. p. 210.
3 - MORRIS, 2003, p. 132-33.
4 - Vale ressaltar que, as comunidades cristãs conheciam muito bem a ceia. Deste modo, o evangelista Marcos ao realçar a relação da ceia com o salvador, contribui para livrar o rito cristão de ser compreendido como mera mecânica litúrgica.
5 - Segundo especialistas, os escritos do apóstolo Paulo (anos 50 do século I) antecedem os Evangelhos. Cf. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 58.
6 - A quem Jesus pagou o preço do resgate da humanidade? Alguns afirmam que Jesus pagou ao diabo. Mas esta interpretação é completamente equivocada, pois a humanidade pecou contra Deus, logo, a dívida diz respeito a Deus e não ao diabo. Portanto, Jesus quitou a nossa dívida junto à justiça divina (Cf. 1 Jo 4.10). Por outro lado, hesitamos em falar em pagamento de “resgate” a Deus Pai, porque não era ele que nos mantinha como escravos, mas sim nossos próprios pecados.
7 - GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia: as comunidades cristãs da primeira geração. São Leopoldo: CEBI; São Paulo: Paulus, 2005. p. 38-39.




LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...