Mortal ou imortal?
Por Fernando Albano
A antropologia teológica pentecostal se caracteriza por um dualismo moderado. Sendo este de natureza axiológica, ou seja, na ordem dos valores, assim, a alma possui um valor mais acentuado do que o corpo.
Certamente contribui para essa realidade a crença na imortalidade da alma. Esta se constitui no principal pilar de sustentação da visão grega dualista. Assim, a teologia pentecostal à maneira helênica acredita numa alma imortal no sentido de uma substância no ser humano que é indestrutível em si e que não pode ser atingida pela morte. O pentecostal Munyon disse: “Somente os seres humanos, na criação de Deus, possuem a virtude da imortalidade”.[1] Segundo Horton e Menzies, entre a morte e a ressurreição do corpo, há um estado intermediário, onde alma subsiste de modo consciente.[2] Desse modo afirmam:
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Para alguns teólogos, essa etapa nada mais representa do que o sono da morte: a pessoa morre e a alma simplesmente deixa de existir, até que seja novamente chamada à existência por ocasião da ressurreição do corpo. A Bíblia, no entanto, deixa bem claro que, no além-túmulo, há vida consciente.[3]
Eurico Bergstén cita Gn 2.7 e declara que todo ser humano é portador da eternidade dentro de si. Também ressalta que a alma não pode morrer.[4] “Somente o corpo do homem é mortal, porém, ressuscitará um dia (cf. At 24.15; Jó 5.28.89)”.[5]
Pode-se dizer que para o pentecostal a morte é bem vinda, pois liberta a alma imortal para uma vida mais plena. Com a morte, o destino do corpo é deteriorar-se, ao passo que a alma permanece. Moltmann descreveu as implicações desse conceito:
Confiando na alma imortal, aceitamos a morte e, de certo modo, a antecipamos. Confiando no Deus criador da vida, esperamos pela superação da morte: “Engolida foi a morte pela vitória” (1 Co 15,54) e por uma vida eterna em que a “morte não mais existirá” (Ap 21,4). A alma imortal pode até saudar a morte como “amiga”, porque esta a redime do corpo terreno; para a esperança da ressurreição, a morte é o último inimigo” (1 Co 15,26) do Deus vivo e das criaturas do seu amor”.[6]
Neste sentido, Moltmann afirma que a crença na imortalidade da alma subestima o aspecto terrível da morte, considerando-a até positivamente.
Mas o que diz a Bíblia? Ainda que não haja uma ideia comum com relação à morte em toda a Bíblia, de modo geral a morte é compreendida como algo negativo. A vida é exaltada e concebida como um presente de Deus. Deus é fonte de vida (Dt 8.3; Sl 36.10). A vida não está nas mãos do ser humano, mas apenas sobre o controle de Deus (Gn 3.22; 6.3; Sl 144.29ss; Jó 34.14s). De acordo com Jüngel, no Antigo Testamento viver significa ter relacionamento com Deus e, por outro lado a morte significa ausência de relacionamento.[7]
No Novo Testamento o horror da morte também está presente, especialmente no relato da morte de Jesus conforme os Evangelhos. Observa-se que nos momentos que antecedem a sua morte Jesus começa a apavorar-se e angustiar-se (Mc 14.24). Pede inclusive que se possível fosse salvo da morte. Portanto, para Jesus a morte não é concebida como “amiga”, mas como adversário terrível. Posteriormente, Paulo afirmará que a morte é o último inimigo a ser vencido (cf. 1 Co 15.26).
O entendimento de Jesus a respeito de alma também diverge da compreensão pentecostal. Quando Jesus falava de “alma” no Novo Testamento, ele utilizava a palavra hebraica vp,n, (nefesh). De acordo com Drewermann, seu equivalente seria “fôlego”.[8] Trata-se de algo que possui fôlego, respira, vive. Isto é “alma” para o hebreu. Também se pode afirmar: é o eu da pessoa. Quando Jesus diz: “Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” (Mt 16.26), isto não deve ser compreendido em sentido espiritualizado, como frequentemente se faz, e sim Jesus quer dizer: para que serve conquistar o mundo inteiro e perder-se a si próprio?[9]
Numa abordagem mais filosófica, Paul Tillich assevera que só Deus possui o poder de ser-em-si e que toda criatura está sob o estigma de ter surgido do nada. [10] Tillich destaca que os escritores bíblicos acreditavam que o ser humano é mortal por natureza, sendo portanto, a imortalidade uma intrusão platônica na doutrina cristã.[11]
Diante dessas considerações, a questão não pode ser evitada: ressurreição da “carne” ou imortalidade da alma? Antropologia semita ou antropologia helenista? Tillich é taxativo a respeito dessa questão: “Para a participação individual na vida eterna, o cristianismo emprega os termos ‘imortalidade’ e ‘ressurreição’ (além da própria expressão ‘Vida Eterna’). Desses dois, somente ‘ressurreição’ é bíblico.”[12] Drewermann argumenta que a crença na imortalidade da alma não é bíblica, assim, defende apenas a ressurreição. Destaca que não se pode apoiar a esperança das pessoas face à morte sobre um princípio metafísico imortal, mas sim na relação com Deus que não abandona na morte.[13]
Há, ainda, um ponto a ser considerado sobre essa questão: diferentemente do que muitos pensam, a doutrina da imortalidade surgiu ao longo da História da Igreja. Segundo Loi: “No cristianismo antigo, foi uma conquista gradual, que se deveu principalmente a Orígenes e a S. Agostinho. No séc. V, ainda se encontrava quem ensinasse que a alma era material e mortal como qualquer criatura”.[14]
A tese dos cristãos em geral, que acreditavam na ressurreição era que a imortalidade era um atributo de exclusividade de Deus. Quanto à alma era só invisível, mas não imortal, de modo que podia receber a imortalidade tão somente pela graça divina.[15] Schneider alega que, segundo a Bíblia a transitoriedade e mortalidade do corpo implicam a transitoriedade e mortalidade da alma, pois se tem uma concepção de ser humano integral.[16]
Portanto, neste particular, a antropologia teológica pentecostal parece mais próxima de Platão do que de Jesus. A crença na imortalidade da alma é um dos principais fundamentos do seu dualismo antropológico que, acaba por resultar em condições favoráveis para certo distanciamento da vida encarnada aqui e agora.
[1] MUNYON, Timothy. A criação do universo e da humanidade. In: HORTON, S. M. (Ed.). Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal. 11. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008. p. 259.
[2] MENZIE, William W; HORTON, Stanley M. Doutrinas bíblicas: uma perspectiva pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p. 260.
[3] MENZIES; HORTON, 1995, p. 260.
[4] BERGSTÉN, Eurico. Introdução à teologia sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1999. p. 151.
[5] BERGSTÉN, 1999, p. 151.
[6] MOLTMANN, Jürgen. A vinda de Deus: escatologia cristã. São Leopoldo: Unisinos, 2003. (Coleção Theologia Publica 3), p. 82.
[7] WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007. p. 172.
[8] DREWERMANN, Eugen. Religião para quê? Buscando sentido numa época de ganância e sede de poder. São Leopoldo: Sinodal, 2004. p. 97.
[9] DREWERMANN, 2004, p. 96-99.
[10] TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 197.
[11] TILLICH, 2005, p. 360.
[12] TILLICH, 2005, p. 836.
[13] Cf. DREWERMANN, 2004, p. 97-98.
[13] TILLICH, 2005, 97-98.
[14] LOI, V. Carne. In: BERARDINO, Angelo Di (Org.) Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 78.
[15] LOI, V. Carne. In: BERARDINO, 2002, p. 78.
[16] BORTOLLETO FILHO, Fernando et al. Dicionário brasileiro de teologia. São Paulo: ASTE, 2008. p. 31.
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