Por Fernando Albano
A religião ocupa-se basicamente com a relação com o “sagrado”, o “transcendental, o “encantado”.[1] Este repercutiu em quase todas as organizações sociais e culturais e teve um papel fundamental para que os seres humanos se situassem no mundo, garantindo sua sobrevivência e desenvolvendo sua cultura.
Até mesmo as questões políticas eram influenciadas decisivamente pela religião, uma vez que a classe sacerdotal sempre teve grande influência sobre os reis e suseranos dos povos. Mas após o surgimento do Estado por influência dos pensadores iluministas e depois da célebre Revolução Francesa a religião fica relegada à esfera mais intimista, de modo a perder poder no que diz respeito à esfera política da vida. Enfim, o Estado distingue-se da religião no século XVII e entra num processo de secularização; surge a democracia no século XX que entre outras coisas significa: que todos podem participar de discursos; todos podem questionar qualquer afirmação; todos podem introduzir qualquer afirmação no discurso e todos podem manifestar suas pretensões, desejos e necessidades.
Contudo, a liberdade democrática e o mundo desencantado pela modernidade parecem assustar o ser humano e este se refugia nas religiões, sobretudo de caráter fundamentalista, que lhe protegem da angústia da escolha e decisões pessoais. Bauman escreveu: “[...] a racionalidade fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa certeza _ antes e acima de tudo, as extravagâncias da liberdade individual”.[2]
O vocábulo “fundamentalismo” convém ressaltar procede dos Estados Unidos e data da segunda década no século XX; é oriundo da iniciativa de teólogos protestantes que em 1910 lançaram “The Fundamentals” para protegerem sua religião da modernidade.[3] Desde então, o termo tem sido utilizado de modo amplo, para se referir à fenômenos religiosos que, como bem destacou Rubem Alves, atribuem um “caráter último às suas próprias crenças”.[4] Convém considerar ainda que, o conceito de “razão metonímica” de Boaventura Santos aplica-se muito bem à postura do fundamentalismo frente à realidade. Santos escreveu: “A razão metonímica é obcecada pela ideia da totalidade sob a forma da ordem. Não há compreensão nem acção que não seja referida a um todo e o todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõe”.[5]
O fundamentalismo obtém êxito por livrar a pessoa da necessidade de escolher entre as possíveis alternativas de entendimento do Sagrado e da realidade. Isto é, ela já possui a verdade e, por conseguinte não precisa mais examinar ou estar aberta a novas aprendizagens e possibilidades, deste modo, sente-se segura num mundo marcado pelas mudanças e inseguranças da pós-modernidade.[6]
Assim, esta estabelecida a ameaça aos princípios democráticos, priorizando-se o autoritarismo, o dogmatismo e visão estreita da realidade. Como detentores da verdade as religiões fundamentalistas comumente “demonizam” o outro que possui uma concepção diferente de realidade e de Transcendente. R. Alves bem observou:
O mais importante não é o que o fundamentalista diz mas como ele diz. É a atitude dogmática e autoritária com respeito ao seu sistema de pensamento, e inversamente a atitude de intolerância e inquisitorial ante qualquer tipo de “herege” ou “revisionista” que o caracteriza.[7]
Deste modo, o autoritarismo é uma das principais características do fundamentalismo, resultando muitas vezes em estados totalitários como se pode observar em alguns países islâmicos. Outros exemplos notáveis podem ser verificados em alguns estados americanos que proibiram o ensino da teoria da evolução nas escolas, adotando unicamente o criacismo; assim como, a retórica político-religiosa de governos dos Estados Unidos. [8]
Na América Latina e no Brasil igualmente são inúmeros os exemplos de fundamentalismos, sendo facilmente identificáveis nas fileiras protestantes que comumente fazem uma leitura da Bíblia de modo literal e, desprezam os modos de leituras de outras confissões cristãs. Bobsin observa que as religiões fundamentadas em livros sagrados como o judaísmo, cristianismo e islamismo são “solos férteis” para fundamentalismos.[9]
O fundamentalismo é exclusivista e contrário ao diálogo com o diferente. Assim, tal postura choca-se aos princípios democráticos, uma vez que não respeita as diferenças e não vê a pluralidade de interpretações do Sagrado e da realidade como diferenças de caráter complementar e não necessariamente autoexcludentes. Diante desta realidade vale recordar as palavras de Buber:
Quando, seguindo nosso caminho, encontramos um homem que, seguindo o seu caminho, vem ao nosso encontro, temos conhecimento somente da nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta nós vivenciamos somente no encontro[10].
Por conseguinte, parece ser necessário para o fundamentalismo o reconhecimento do caráter humano da religião e de seu discurso sobre o Sagrado. É recomendável uma abertura à sua vulnerabilidade e incompletude como discurso, e o reconhecimento da autonomia de outros saberes religiosos e científicos que também visam compreender a realidade humana.[11]
As religiões entre o fundamentalismo e a democracia têm como tarefa preservar o sagrado neste mundo secularizado, individualista, escravo do mercado, enfim pós-moderno. Diante deste quadro, o fundamentalismo parece engrossar suas fileiras a cada dia, enfraquecendo deste modo os ideais democráticos. Deste modo, percebe-se o grande desafio para as religiões, a saber: respeitar os ideais democráticos que promovem o humano; realizar a desconstrução de definições reducionistas da realidade e a reconstrução de novas maneiras de ver o mundo, sem fundamentalismos e autoritarismos.
[1] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, [s.n.d.], p. 206.
[2] BAUMAN, [s.n.d.], p. 229.
[3] OBSIN, Oneide. Correntes religiosas e globalização. 2. ed. CEBI: São Leopoldo: PPL: Curitibanos: IEPG: São Leopoldo, 2006. p. 121.
[4] ALVES, Rubem. O enigma da religião. 6. ed. Campinas: Papirus, 2007. p. 11.
[5] SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006 (Coleção para um novo senso comum), v. 4, p. 97.
[6] Cf. BAUMAN, [s.n.d.], p. 228.
[7] ALVES, 2007. p. 11.
[8] BOBSIN, 2006. p. 116.
[9] BOBSIN, 2006. p. 107.
[10] BUBER, Martin. Eu e tu. 2. ed. São Paulo: Moraes, s. d.
[11] Cf. SANTOS, 2006, p.107.
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