quarta-feira, 29 de abril de 2009

Miojo Exegético

Eu estava um pouco ansioso, pois não atualizava o blog há duas semanas, e blog desatualizado é blog não visitado. Mas ao compartilhar esse sentimento com um amigo e leitor, ele me acalmou, lembrando-me do título do blog: Rodrigo, o título é claro, tu só escreves em momentos ociosos. É verdade, nada melhor do que compartilhar idéias, ser edificado e edificar na “hora do lanche”.

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Quero fazer uma rápida observação exegética do texto áureo da lição da Escola Dominical do próximo domingo, dia 3/5/09, o texto é 1Co 6.20 que na tradução utilizada pela CPAD (Almeida Revista e Corrigida - ARC) diz o seguinte:

“Porque foste comprado por bom preço; glorificai, pois, a Deus no vosso corpo e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus”.

Na 27ª edição do Novum Testamentum Graece (NTG) de NESTLE-ALAND, umas das melhores versões gregas do Novo Testamento da atualidade, o versículo em questão termina na palavra corpo: “Pois fostes resgatados por preço; glorificai pois a Deus com vosso corpo.” (tradução do autor). No texto grego temos uma chamada ao aparato crítico indicando que no v. 20 ocorre um acréscimo, onde alguns manuscritos unciais, edições da Vulgata e versões siríacas, incluem no final do versículo a expressão: kai en to pneumati, atina estin tou Theou [e no vosso espírito, o qual é de Deus].

Percebemos que a ARC ao traduzir o texto opta pelo acréscimo encontrado em algumas versões do texto grego. Contudo, os editores do NTG acertam em não aceitar esse acréscimo, por dois fatores:

1 – O texto utilizado no NTG é embasado no manuscrito P46 e no Códice Sinaítico, ambos, importantes testemunhas dos textos alexandrinos, ou seja, textos mais utilizados pelas comunidades antigas, quem sabe, os mais próximos dos originais.[1]
2 – o segundo aspecto é teológico. Esse acréscimo desvirtua todo o sentido teológico da perícope em que o v.20 faz parte, a saber, 1Co 6.12-20. Caso a expressão fosse aceita, ter-se-ia uma dicotomia na estrutura constitutiva do ser humano, corpo e espírito, idéia inconcebível numa perícope em que soma [corpo] ganha conotação de pessoa e não somente de corpo enquanto matéria corruptível.

Ao comparar o v. 20 nas versões ARA, BJ e NVI percebe-se que todas seguem o texto crítico do NTG, deixando claro que a ARC comete pecado exegético nesse versículo.

Como exposto acima, esse acréscimo destoa do conteúdo teológico da perícope. Para entender melhor, é necessário saber o que Paulo entende por soma. Já postei uma breve análise semântica do termo, se quiser, leia aqui!

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Deixo bem claro que não tenho nada contra a ARC. Reconheço que essa tradução forjou, e ainda forja, a espiritualidade de milhões de cristãos brasileiros. Contudo, como leitor e pesquisador, prefiro as versões modernas, não somente pelo português atual e fluente, mas pela qualidade exegética.
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[1] Bittencourt diz: “Pode-se adiantar ser este manuscrito (o códice sinaítico) um dos mais valiosos textos do Novo Testamento”. BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento: metodologia da pesquisa textual. 3 ed. Rio de Janeiro, 1993. p. 81.

domingo, 12 de abril de 2009

Um final de semana diferente

Nessa sexta feira da paixão eu me encontro em paz de espírito. Está sendo um dia de reflexão no sofrimento de Cristo. Um dos pensamentos que me ocorreram foi o de que as agonias e turbulências sofridas por Jesus é que possibilitam esses momentos de paz e esperança. A palavra lembrança nesse final de semana deve ir além do conceito “trazer a memória”, “recordar”. Em o Novo Testamento a palavra grega anamnêsis (recordação) significa “transportar uma ação enterrada no passado, de tal maneira que não se percam a sua potência e a vitalidade originais, mas sejam trazidas para o momento presente”.[1] A sexta feira da paixão e o domingo de Páscoa devem ser mais que um “feriadão” em nossas vidas.

Creio que não deve-se enfatizar a crucificação mais que a ressurreição e vice e versa, afinal, ambos compõem a base da fé cristã. Contudo, o sofrimento de Cristo me chama mais atenção. Talvez, porque faço parte duma geração que é apegada ao visual e a crucificação é uma imagem forte, não sei, só sei que a cruz é escândalo, é a identificação de Deus com o sofrimento, e isso não é para qualquer divindade.

No fim da Idade Média era comum o povo identificar-se com o sofrimento de Cristo, o sofredor por excelência. Nele encontravam, além de conforto em meio às dores, a esperança de superação de todos os males. No entanto, na época de Lutero as práticas de contemplação do sofrimento de Cristo se multiplicaram e se tornaram superficiais. Em 1519, no tempo da Páscoa, o reformador redigiu um sermão sobre a paixão de Cristo, onde pretendia levar a comunidade a uma verdadeira contemplação do santo sofrimento de Cristo.[2] Como vivemos também num período onde o calvário é sublimado por falsas ofertas de vida sem dor e Cristo sem cruz, as palavras de Lutero são atuais.

De acordo com Lutero, a autenticidade do verdadeiro vislumbre da crucificação resulta em assombro. Aquele que medita na cruz percebe o rigor e a ira de Deus para com o pecado e os pecadores. A seriedade é tal que nem seu filho unigênito foi poupado (Is 53.5). Surge a pergunta: o que será dos pecadores, se até o dileto Filho é ferido assim? Refletir sobre a crucificação é reconhecer que o pecado é gravidade indizível. Lutero escreveu:

“E se pensares bem a fundo que é o próprio Filho de Deus, a eterna sabedoria do Pai, quem sofre, não deixarás de ficar assustado, e quando mais profunda for a tua reflexão, tanto mais assustado haverás de ficar.”[3]

Quem crucificou a Cristo? Fomos nós. O reformador nos orienta a enxergarmos os pregos vazando as mãos de Jesus e termos a consciência de que isso é obra nossa: “pois teus pecados são com certeza responsáveis por seu sofrimento; tu és aquele que, através de seu pecado, estrangulou e crucificou o filho de Deus”.[4]

Segundo o sermão, se a pessoa não chegar a um conhecimento de si mesma, assustar-se com seus pecados a ponto de ficar quebrantada, o sofrimento de Cristo não tem proveito para ela. Quem não se assusta consigo mesmo, é porque não entendeu a gravidade do pecado. Lutero acredita que o fiel deve pedir a Deus que o leve a uma meditação frutífera do sofrimento de Cristo, sem essa intervenção divina, tal contemplação não é possível.

“Quanto a quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente que procede melhor do que jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os dias [...] pois essa meditação transforma a pessoa [...] É aqui que o sofrimento de Cristo efetua sua obra autêntica, natural e nobre, que estrangula o velho ser humano [...].”[5]

Somos gratos a Deus, visto esse final de semana não acabar em luto, pois ele ressuscitou, e a nossa esperança é viva (1Pe 1.3). Graças a ressurreição a contemplação do sofrimento de Cristo não é vã, pois ainda que ele faça parte de nossa existência, não é a palavra final.
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[1] MARTIN, R. P. in: HORTON, S. (org.) Teologia sistemática: uma perspectiva pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996. p. 574.
[2] FISCHER, J. in: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: os primórdios – escritos de 1517 a 1519. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal: Porto Alegre: Concórdia: Canoas: Ulbra, 2004. p. 249-250.
[3] LUTERO, Martinho. Obras selecionadas: os primórdios – escritos de 1517 a 1519. 2 ed. São Leopoldo: Sinodal: Porto Alegre: Concórdia: Canoas: Ulbra, 2004. p. 251.
[4] LUTERO, Martinho. op. cit. p. 252-53.
[5] LUTERO, Martinho. op. cit. p. 253.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A Cruz

"A cruz continua sendo pedra de tropeço para aqueles que, como Nietzsche, adoram o poder. A cruz é tropeço para todos os que confiam no poder humano e em sua própria capacidade para se salvar. Como os judeus contemporâneos de Paulo, muitos de nós tratamos de nos amparar em nossa própria justiça. Muitas pessoas crêem que Deus está obrigado a aceita-las por suas boas obras. Quem pensa assim tem uma percepção muito pequena de Deus, ou melhor, uma exagerada percepção de si mesmos. Ao contrário, aqueles que tiveram se quer uma visão parcial da majestade de Deus não podem cair em nenhum destes erros.

Nunca ninguém pode se salvar a si mesmo e ninguém nunca o fará. Essa é a mensagem da cruz e por isso é pedra de tropeço para aqueles que têm uma exagerada percepção de seu próprio poder. Assim como a cruz é tropeço para os que confiam em sua própria moralidade, é loucura para aqueles que confiam em sua própria capacidade intelectual. A. G. Ayer, um filósofo de Oxford particularmente famoso logo depois da Segunda Guerra Mundial, escreveu um livro intitulado Linguagem, verdade, e lógica. Assim se referiu com sarcasmo ao cristianismo: De todas as religiões históricas, há muito boas razões para considerar ao cristianismo como a pior, porque descansa em duas doutrinas. A primeira é o pecado original, e a segunda, a expiação vicária de Cristo. Ambas são intelectualmente inconcebíveis e moralmente absurdas. Esta é a perspectiva do mundo sobre a cruz. Ao contrário, para aqueles que Deus chamou, a cruz não é fraqueza senão poder. Não é loucura, senão sabedoria. A cruz é o poder de Deus porque por meio dela Deus fez possível a salvação dos pecadores. Ele nos reconcilia consigo mesmo, nos livra da culpa de Seu justo juízo sobre nossos pecados. Ele no liberta da escravidão de nosso egocentrismo e nos põem nos elevados caminhos da santidade.
Tudo isso é possível só por meio da cruz. A cruz é também sabedoria de Deus, porque por meio dela Deus não só resolve nosso problema senão também, por assim dizer, Seu próprio dilema. Como poderia Deus expressar sua justiça e condenar aos pecadores sem frustrar desta maneira Seu amor por eles? Como poderia expressar Seu amor e perdoar aos pecadores, sem pôr em dúvida Sua justiça? Em outras palavras, como poderia ser, ao mesmo tempo, um Deus justo e salvador? A resposta de Deus foi a cruz. Ali, em Seu Filho, tomou nosso lugar, levou nossos pecados e morreu nossa morte."
John Stott

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