segunda-feira, 30 de junho de 2008

O ser humano deificado: parte II


Texto em parceria com Israel W. Sell


Desta forma o homem tornou-se o seu próprio ídolo, colocando-se no lugar do Deus vivo, usurpando o trono de Deus. Desde os primórdios da criação até os nossos dias o homem quer organizar-se para chegar diante de Deus, quer ser seu próprio ídolo, por isto, Deus entrega o ser humano a si mesmo, gerando uma quebra de moral, uma quebra no verdadeiro sentido da criação de Deus. Vejamos adiante as tentativas idólatras dos seres humanos que por meio de suas torres querem chegar aos céus, querem se colocar no lugar de Deus. O homem quer romper com a parceria de Deus, quer “viver cheio de si”.
Ao longo da história o homem buscou essa parceria com Deus (deuses), até o momento em que quis ocupar o lugar dele. Deificação diz respeito ao processo cerimonial, religioso ou social mediante o qual o ser humano (ou sociedade) eleva-se acima de si mesmo, até a divindade. Na antigüidade os reis eram considerados filhos dos deuses, as vezes eram chamados de deuses (Alexandre, o Grande) outros se intitulavam deuses, como Antíoco Epifânio.[1] Depois temos os imperadores romanos, que ao morrerem eram oficialmente deificados, porém alguns já exigiam adoração em vida (Calígula, Nero e Domiciano), sendo que essa prática só parou com Constantino.
Vemos de certa forma a deificação do ser humano (a torre de babel novamente sendo construída) na evolução do pensamento humano. No pensamento humanista-renascentista, o homem era considerado artífice de si mesmo, podendo ser um só espírito com Deus.[2] Podemos pular lá para o século XVIII, onde o voluntarista Nietzsche declara no “evangelho” de Zaratustra: “Deus está morto”. Para ele o homem não pode desenvolver seus valores enquanto acreditar na existência de Deus.[3] Ainda que Nietzsche repreenda a moral religiosa de sua época, sua filosofia coloca o homem na posição de deus de si mesmo, o homem como sendo seu auto-redentor. O que dizer da declaração do materialista Feuerbach em sua obra A essência da religião? Ele diz: “a divindade do homem é o escopo final da religião”.[4]
Olhando agora para a pós-modernidade vemos o ser humano proporcionando salvação e eternidade a partir do laboratório. Em seu livro Brincando no Paraíso Perdido, Euler R. Westphal afirma que existe na ciência pós-moderna uma dimensão religiosa muito forte, principalmente no âmbito da biotecnologia, que domina o patrimônio genético, dessa forma, ela tem o poder de decidir sobre a vida e a morte das pessoas, inclusive atender a encomendas, um filho conforme o desejo dos pais. Analisando o livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, ele afirma que temos a ditadura científica representada com muita propriedade. Nesse admirável mundo novo os cientistas são chamados de “predestinadores”, ou seja, aqueles que decidem sobre a usina humana, sobre os destinos dos embriões. A eternidade é possível a partir do laboratório.[5]
Vemos aqui a dominação da ciência como uma grandeza religiosa, pois ela promete a salvação eterna através da saúde perfeita. Um mundo sem dor e sem a possibilidade da morte, um mundo seu Deus.
Contudo a realidade do ser humano é dura, e sua história tem demonstrado que ele não sabe lidar com o poder, pois o exercício do poder revela quem de fato uma pessoa é. E o que é o ser humano senão uma criatura pecadora, carente e com saudades do paraíso? Ao mesmo tempo em que os avanços tecnológicos impressionam, eles assustam, pois cura e arma biológica provém do mesmo arsenal científico.[6] O homem está trilhando um caminho sem deixar migalhas de pão para poder voltar. A bioética é uma tentativa de imprimir responsabilidade às ciências que se ocupam com a vida, mas a pergunta que fica é: será que a bioética está cumprindo seu papel? Será que alguém tem a resposta? Uns visam o lucro, outros visam a vida, diante duma sociedade capitalista quem será que fala mais alto?
O ser humano deificado vive a mercê de si mesmo. Vive sem espelhos para enxergar a realidade que está criando, ele está como uma criança que ganhou um brinquedo novo, ele está empolgado com o poder criador, ele está iludido e desesperado. O ser humano deificado não sabe ser Deus.[7]

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[1] R. N. CHAMPLIN; J. M. BENTES, Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, p. 37. Os monarcas egípcios eram considerados divinos, quem sabe Epifânio adotara essa prática para si.
[2] G. REALE; D. ANTISERI, História da Filosofia, v. 2, p. 82. Leia na íntegra o discurso de João Pico de Mirândola na página 13.
[3] B. MONDIN, Curso de Filosofia, v. 3, p. 75-82.
[4] B. MONDIN, Curso de Filosofia, v. 3, p. 94.
[5] E. R. WESTPHAL, Brincando no paraíso perdido, p. 31-48.
[6] G. BRAKEMEIER, O ser humano em busca de identidade, p. 129.
[7] Nos vem a mente o filme Todo Poderoso, com Jim Carrey, que vive um jornalista frustrado que recebe temporariamente os poderes de Deus. O resultado é catastrófico, pois ele só recebeu os poderes de Deus e não sua sabedoria.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

O Ser Humano Deificado: sua realidade nua e crua


Texto realizado em parceria com Israel W. Sell.


Desde o relato da criação a presença do homem é atribuída diretamente a Deus. Tanto é, que ao criá-lo a Bíblia usa o verbo barah (“criar”), verbo usado apenas quando se trata da criação de Deus no AT (Gn 1.27; 5.1; 6.7), e também o verbo yasar (“formar”), conforme Gn 2.7-8. Desta forma o homem é levado a uma existência dualista de relacionamentos, com a natureza e com o próprio Deus, afinal de contas do pó da terra é formado (yasar) o homem (relação com a natureza) e pelo fôlego de Deus é criado (barah)[1].
Desta forma temos os dois lados na questão relacional do ser humano, a relação com a natureza e a relação com o Deus criador. Por mais profundo que seja a relação entre a natureza e o homem[2], não vamos nos deter a este assunto, mas daremos maior ênfase na questão relacional homem-Deus.
Nos relatos de Gênesis temos a impressão de que o enfoque da criação de Deus era o ser humano. O ser humano como coroa da criação de Deus. Toda a criação anterior ao homem foi feita para o usufruto do ser humano, tudo foi criado para sustentar o homem. “Desta forma, embora o homem esteja diante de Deus num relacionamento de dependência criada, ele também desfruta da condição de uma personalidade sem igual e especial em relação a Deus[3].”
Todo este relacionamento especial do homem para com Deus parece ser quebrado com a queda do ser humano. Rompe-se uma parte deste elo, por causa do primeiro pecado de Adão[4]. Pecado este que foi ser igual a Deus, ter o conhecimento de Deus, discernir entre o bem e o mal.
Adiante no livro de Gênesis podemos notar a conhecida história da torre de Babel, onde a hermenêutica tradicional interpreta da seguinte forma: os homens se reúnem para fazer uma torre que chegue aos céus, o que quer dizer que o homem quer colocar-se no lugar de Deus, o homem quer “deificar-se”. Mas será que esta seria uma interpretação correta, ou uma interpretação completa? Talvez não seja esta a melhor interpretação a ser feita, há quem diga[5] que nesta história há diversos temas por trás, mas um deles está diretamente ligado a nossa temática, que é o agir de Deus intervindo nos planos soberbos dos seres humanos, que vêem a cultura urbana como um centro imperialista. Desta forma a “torre do assalto humano ao céu” chama a atenção de Deus, de modo que Ele mesmo desce para olhá-la. “A subida acaba em caída, a concentração em dispersão, o nome famoso em nome infamante[6].”
Saltando alguns séculos, analisemos a visão antropológica de Paulo. Ao falar de antropologia paulina, geralmente se fala de sua teologia soteriológica. Em primeiro lugar Paulo insiste em dizer que o ser humano necessita da graça de Deus, é enfático quanto à universalidade do pecado do homem. Com isto como base, Paulo faz a analogia do velho e do novo Adão, ou seja, por Adão entra o pecado no mundo, onde “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Para Paulo, o homem é um ser moral “com um senso inato de certo e errado, ao qual Paulo se refere como sendo sua consciência (21 vezes)[7]”. Porém, esta consciência pode perder sua sensibilidade para o bem e tornar-se “cauterizada” (1 Tm 4.2) ou ainda “contaminada” (1 Co 8.7).
O que acontece quando esta consciência se contamina ou acaba por cauterizar-se? A melhor resposta talvez seja a perícope de Rm 1.18-32. Não queremos aqui entrar em questões ligadas à lingüística ou à estilística desta perícope, mas observar um pouco mais a antropologia paulina quando não está ligada diretamente à sua soteriologia.
Já de início temos um resumo do mundo gentio (holístico?)[8]. É claro que os gentios, como seres humanos, também são seres morais, mas escolheram viver suprimindo a verdade (NVI). Com incontáveis maldades[9] eles martelam sua consciência, que agora está contaminada, ou cauterizada. É com este modo de vida que se levanta a ira de Deus, que se revelando aos seres humanos de forma natural[10], sobre essa percepção de verdade e justiça, que abandona o amor e a alegria[11].
De forma concreta podemos dizer que o ser humano pode filmar uma planta crescendo em todas as fases de sua vida, explicar sua função, estudar sua cadeia química, podemos reproduzi-la de maneira incrível, e podemos até destruí-la. Porém, criá-la é algo que não podemos fazer. E uma simples plantinha nos demonstra o que não podemos fazer e o que não somos, a saber, criadores[12]. Somos limitados, necessitamos de misericórdia dia após dia, isto se dá como, por exemplo, na doença, mas principalmente na morte. Além destas coisas, outras tantas estão longe de nós, como a busca pela imortalidade, a busca pelos mistérios da vida, que podem ser resumidas em duas perguntas que, enquanto seres humanos carnais, continuarão sem resposta: Quem eu sou? e; Para onde vou?
Paulo afirma que os gentios têm o conhecimento de Deus, sabem das reivindicações de que ele é Senhor e também sobre suas responsabilidades. “As pessoas sem dúvida alguma tinham a possibilidade de se portarem corretamente perante Deus... o condenado não pode alegar desconhecimento. Não pode evadir-se[13]”.
Os homens “tendo o conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças”. Ao invés de honrar e glorificar a Deus, tais pessoas negam sua condição de criaturas e principiam a ascensão para serem super-humanas, assim, criando-se (barah) semelhantes a Deus. Este versículo ainda nos dá a conotação de ingratidão dos seres humanos (gentios?). Quando não agradecemos a Deus pelo bem que ele nos concedeu, rapidamente o esqueceremos e seremos dominados por “autocomiseração sentimental”. Assim, parece que quem tem de pedir desculpas é o próprio Deus[14].
Esta mentalidade deturpada de Deus e de si mesmo faz estourar uma “podridão interna” da sociedade humana, que POHL divide em três unidades de pensamento[15]:
- Exaltar-se acima de Deus leva à queda para a tolice indescritível da idolatria (vv. 22-24);
- Desonrar a Deus conduz a deplorável amor próprio (vv. 25-27);
- Falta de gratidão a Deus leva a uma sociedade que despreza as pessoas e que se destrói a si própria (vv. 28-32).
Deus é um Deus de vida, e também é o protetor da vida, por isto sua ira é aceitável, afinal de contas, onde a vida é prejudicada, a ira de Deus se ascende. Isto se dá a negativa de honrar a Deus e à idolatria dela decorrente, desrespeitando, assim, o primeiro mandamento.
Neste trecho poderíamos esperar que Deus entregasse o homem aos poderes de Satanás ou de demônios, porém, eles são entregues a si mesmos, talvez até pior que estar sob os poderes de Satanás e seus demônios. Os homens são entregues à concupiscências de seus corações (v. 24), às paixões infames (v.26), a uma disposição mental reprovável (v.28), ou seja, Deus os entregou às suas vontades, seus desejos. Deus não faz cair fogo do céus, nem faz chover canivetes, Deus entrega os tijolos e o cimento na mão do homem para que ele reconstrua a torre de Babel.
Isto geram conseqüências e também potências geradas pelas deliberações humanas. Eles começam a prejudicar-se entre si (vv. 29-30). E isto, eles consideram belo, “viver sem Deus”, mas em Deus é posta a culpa pela humanidade que sofre. Aqui cabe dizer que o mundo só não virou um verdadeiro inferno porque a mão de Deus se mostra no curso da humanidade, tanto é que a obra salvífica de Deus se encontra no meio da conturbada história humana, a saber Jesus Cristo, o logos vivo de Deus.
A lógica correta seria que o ser humano desse honras a Deus, mas quando se trata da deificação do homem esta lógica se inverte. As pessoas não suportam viver sem um deus, tem de se ajoelhar perante algo, pois foi o próprio Deus quem criou o ser humano para ter uma relação consigo. O ser humano precisa de algo que seja maior que ele, precisa de um ser superior[16]. Assim, o ser humano põe um objeto criado, um “elemento do cosmos” (Gl 4.3, 8-10), acima de si, e mais uma vez, desrespeitando o primeiro mandamento. Esta é a idolatria, e suas muitas variações, onde objetos/pessoas são elevados ao patamar de Criador e são divinizados. O homem vive em torno deste(s) ídolo(s), e o quanto mais longe do Deus verdadeiro e Criador, tanto melhor.
Alguns ídolos são talhados em troncos, onde uma imagem de homem corruptível, ou de aves, quadrúpedes e répteis são adorados. Isto deveria soar mal, pois imagine, os seres humanos incumbidos de serem representante de Deus na terra, ajoelham-se diante de répteis, seres criados para rastejar. Ou seja, o homem rasteja perante o ser feito para rastejar! Mudaram a glória do Deus incorruptível!





continua...


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[1] H. D. MaCDONALD, Homem, Doutrina do. in Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. p. 259.
[2] Muitas coisas pertinentes a este assunto poderiam ser aqui discutidas, como o “castigo” dado à terra e aos animais (em especial a serpente) em virtude da queda do ser humano. Ainda a redenção do ser humano regozijada pela terra (Is 11.6-9). A natureza feita para servir ao homem, entre outros temas associados à relação homem-natureza.
[3] H. D. MaCDONALD, op. cit. p. 259.
[4] Entenda-se aqui tanto o lado singular, quanto o lado coletivo que o hebraico adam significa.
[5] L. A. SCHOKEL, Bíblia do Peregrino. p. 29.
[6] Ibid.
[7] H. D. MaCDONALD, op. cit. p. 261.
[8] Não queremos aqui dizer que os judeus estão livres das acusações a seguir, afinal de contas, eles já ouviram isto diversas vezes, de diversas formas, de diversos profetas. Ainda lembramos que a ira de Deus dirigida ao povo judeu está na seguinte perícope (Rm 2.1-3.8).
[9] Isto é dito tendo por base o v. 18, onde temos “toda impiedade” denotando um número alto de violações.
[10] Entenda-se aqui a revelação de Deus por meio da natureza, revelação da bondade da criação de Deus.
[11] Adolf POHL. Carta aos Romanos, comentário esperança, p. 42-43.
[12] Ibid. p. 44.
[13] Wiard POPKES. Aufbau, in Adolf POHL. op. cit. p. 45.
[14] Adolf POHL. op. cit. P. 45.
[15] Ibid. p. 46-49.
[16] Ibid. p. 48.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Ler Devia ser Proibido


Por Guiomar de Grammon


A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.
Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular um curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.
Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade. Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.
Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.
Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos... A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Da Vontade Cativa

Escrevo hoje, uma explanação sobre o escrito de Lutero: Da Vontade Cativa (Obra Selecionada v. 4 - Editora Sinodal)

Lutero escreve Da Vontade Cativa (De Servo Arbitrio) em resposta a publicação de Erasmo de Roterdã, que em sua Diatribe[1] sobre o livre arbítrio posiciona-se contra uns dos temas centrais da teologia de Lutero, sua antropologia. Esse debate com Erasmo não teve muita repercussão em meio às massas, mas levou Lutero ao centro da discussão intelectual na época. Na verdade Lutero respondeu ao escrito de Erasmo porque não poderia deixar de responder a um escrito tão indouto de douto autor, pois Lutero já havia refutado a idéias do livre arbítrio no Debate de Heidelberg em 1518[2]. Vale ainda ressaltar que Lutero demorou a responder a Diatribe não só por falta de tempo, mas porque achou o escrito um tédio, indigno e teve por ele desprezo, chegou a afirmar em carta para um amigo que não conseguia ler mais do que duas páginas do livro de Erasmo.

Ao se defrontar com a definição de livre arbítrio de Erasmo, que defendia o livre arbítrio como sendo uma potência, através da qual o ser humano se pode inclinar ou afastar ao/do que leva à salvação, Lutero reage afirmando que o livre arbítrio não passa de uma mentira e que essa questão pra ele é mais clara que o sol (p.21).
Lutero começa examinando a obra de Erasmo refutando suas idéias acerca da compreensão das Escrituras, que para Erasmo são incompreensíveis, Lutero afirma isso a partir de uma má interpretação de Rm 11.33[3], onde Erasmo coloca as Escrituras no lugar de Deus. Lutero não concorda e diz que, Deus e a Escritura são duas coisas diferentes, não menos do que são duas coisas o Criador e a criatura (p.23). Lutero confessa que existem passagens obscuras na Escritura, contudo, ela que confessa a trindade de Deus, a humanidade de Cristo e o pecado irremissível.
O cerne da discussão entre Lutero e Erasmo é a vontade humana e a salvação de Deus, do que o livre arbítrio é capaz, o que sofre, de que modo se relaciona com a graça de Deus. Não se pode ignorar essa questão, pois é necessário saber diferenciar o poder de Deus e a nossa força, a obra de Deus e a nossa. Nisso está o conhecimento de Deus e o nosso. Erasmo em sua definição de cristianismo, segundo Lutero, afirma que devemos atribuir a Deus todo nosso bem, logo, afirma ao mesmo tempo, consciente ou não, de que a misericórdia de Deus faz tudo sozinha e que nossa vontade nada faz, mas antes sofre, nisso se encontra a maior contradição de Erasmo[4].
Lutero discute com Erasmo acerca da vontade de Deus, Erasmo coloca a vontade de Deus a mercê do arbítrio do homem, contudo, Lutero é enfático em afirmar que a vontade de Deus é soberana e age independente do ser humano. Deus age em prol do homem abatido e humilhado, ou seja, nas palavras de Lutero:

o homem não pode humilhar-se completamente enquanto não souber que sua salvação em nada depende de suas forças, desígnios, esforços, vontade e obras, mas totalmente do arbítrio, desígnio, esforço, vontade e obra de um outro, a saber, tão somente de Deus, pois enquanto estiver persuadido de poder fazer ao menos um pouquinho em prol de sua salvação, ele permanece na confiança de si mesmo e não desespera inteiramente de si; por esta razão não pode humilhar-se diante de Deus...”. (p. 46)

Lutero tem clareza quando descreve a condição do ser humano e sua vontade, que serve ou ao deus desse século, Satanás, ou serve a Deus, i, é; a vontade humana está colocada no meio como jumento, “Se Deus está sentado nele, ele quer e vai como Deus quer (...) Se Satanás está sentado nele, ele quer e vai como quer Satanás” (p. 49). É interessante notar que o jumento não está em condições de escolher, antes, os próprios cavalheiros o disputam. Para Lutero, afirmar que o homem tem livre arbítrio é a mesma coisa que divinizá-lo, é dar ao homem poder de interferi nas coisas superiores, espaço que está restrito somente a Deus, ou seja, Lutero até admite, com reservas é claro, que o ser humano tem livre arbítrio em questões tais como, suas faculdades e posses, o que comer e vestir, coisas do âmbito inferior. Para Lutero o ser humano está distribuído em dois reinos, um no qual ele é senhor e é conduzido pelo seu próprio arbítrio e conselho (inferior), no outro reino, ele não é deixado na mão de seu próprio conselho, antes é conduzido e amparado pelo conselho de Deus e também segue os mandamentos divinos.
A Diatribe sonha que o homem é íntegro, que pode cumprir as exigências das Escrituras, que, ao contrário, define o ser humano como corrupto e cativo. Aqui entra uma questão muito importante, Lei e Evangelho, Lutero deixa bem explícito a incapacidade de Erasmo em discernir essas duas grandezas presentes na Escritura. Pois Erasmo no intuito de provar biblicamente o livre arbítrio utiliza-se de muitas passagens da Escritura com imperativos, alegando que se os seres humanos não fossem capazes de cumprir tal ordem, Deus não as colocaria nas Sagradas Letras, contudo, Lutero rebate afirmando que essas passagens na verdade não querem dizer do que os seres humanos são capazes, e sim, do que são devedores. Lutero tem convicção ao afirmar que:

as palavras da lei são ditas não para afirmar o poder da vontade, mas para iluminar a razão cega, para que ela veja quão nula é sua luz e quão nula é a força da vontade. ‘O conhecimento do pecado vem pela lei (Rm 3.20); não diz que por ela vem a acolição ou evitação do pecado. Todo o sentido e força da lei consiste unicamente em proporcionar conhecimento apenas do pecado, mas não em conferir alguma força”(p.91)

E assim a discussão segue, Erasmo partindo do pressuposto de que o ser humano consegue cumprir os imperativos da bíblia e Lutero continua batendo na mesma tecla, ou seja, os imperativos tem a simples função de abrir nosso olhos soberbos e cegos, mostrando-nos o diagnóstico de nosso estado, pobre pecador, saco de vermes. Na verdade Erasmo esquece-se completamente da afirmação que fez, alegando que o livre arbítrio nada pode sem a graça, ou seja, ele mesmo derruba sua construção ao tentar impor a vontade humana autonomia quanto a salvação.

O ser humano jamais poderia voltar-se para Deus caso tivesse poder para salvar-se. Aliás, o livre arbítrio dispensa Cristo e o Espírito de Deus, pois porque Cristo haveria de morrer por seres que podem se auto-redimir? Ou ainda, porque o Espírito haveria de convencer do pecado e do juízo se está diante de uma criação autônoma? Parece que na visão de Erasmo, o ser humano tornou-se uma espécie de inteligência artificial, algo criado que não depende mais de seu criador para manter-se e salvar-se.

Contudo, a Escritura propõe um ser humano que não só está amarrado, mas cativo, enfermo e morto, e devido a ação de Satanás adquiri ainda uma cegueira sem tamanho, onde passa a crer que é livre, beato, solto, ser potente, são e vivo. Essa estratégia de satanás funciona, pois ele sabe que se o ser humano tivesse clareza quanto ao seu estado, ele não teria ninguém sobre seu domínio, pois todos correriam para a Cruz.

O que fica claro é que se o ser humano pratica algo de bom, só pode ser obra de Deus. O ser humano não faz coisa alguma, mas é todo feito, é puramente passivo. As riquezas do reino são oferecidas por meio do evangelho e não pelos poderes do livre arbítrio, a graça de Deus não exige obra, pois no Crucificado temos essa dádiva de sermos chamados filhos de Deus, filhos que agem de forma desinteressada para promoverem a glória de Deus, fazem o bem mesmo se não houvesse nem reino nem inferno. É interessante notar que o reino não está sendo preparado, já está preparado, porém, os filhos, esses sim estão sendo preparados para o reino, assim como Satanás prepara os seus para habitarem o inferno (p.111).
Deus é Deus! E age conforme quer, seu querer não exige causa ou razão que sirva como regra, pois Ele é soberano e tem seus mistérios que são ocultos ao ser humano, que só pode esperar a redenção do cosmos e juntamente com ele ser feito novo.

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[1] discussão filosófica no latim tardio. Crítica acerba; escrito ou discurso violento e injurioso. Dicionário Aurélio séc. XXI.[2] As teses 13-15 deixam bem claro a posição de Lutero quanto ao livre arbítrio. 13 – Após a queda, o livre arbítrio é um mero título; enquanto faz o que está em si, peca mortalmente, 14 – Após a queda, o livre arbítrio tem uma potência apenas subjetiva para o bem; para o mal porém, sua potência é sempre ativa, 15 – O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência pela potência ativa, mas sim pela subjetiva, menos ainda pôde progredir em direção ao bem. Obras Selecionadas v. 1, p. 38.[3] “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos”.[4] Segundo Lutero, o próprio Erasmo muitas vezes se contradiz e luta consigo mesmo em sua Diatribe, como se ela fosse degolada pela sua própria espada.

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