sexta-feira, 6 de junho de 2008

Da Vontade Cativa

Escrevo hoje, uma explanação sobre o escrito de Lutero: Da Vontade Cativa (Obra Selecionada v. 4 - Editora Sinodal)

Lutero escreve Da Vontade Cativa (De Servo Arbitrio) em resposta a publicação de Erasmo de Roterdã, que em sua Diatribe[1] sobre o livre arbítrio posiciona-se contra uns dos temas centrais da teologia de Lutero, sua antropologia. Esse debate com Erasmo não teve muita repercussão em meio às massas, mas levou Lutero ao centro da discussão intelectual na época. Na verdade Lutero respondeu ao escrito de Erasmo porque não poderia deixar de responder a um escrito tão indouto de douto autor, pois Lutero já havia refutado a idéias do livre arbítrio no Debate de Heidelberg em 1518[2]. Vale ainda ressaltar que Lutero demorou a responder a Diatribe não só por falta de tempo, mas porque achou o escrito um tédio, indigno e teve por ele desprezo, chegou a afirmar em carta para um amigo que não conseguia ler mais do que duas páginas do livro de Erasmo.

Ao se defrontar com a definição de livre arbítrio de Erasmo, que defendia o livre arbítrio como sendo uma potência, através da qual o ser humano se pode inclinar ou afastar ao/do que leva à salvação, Lutero reage afirmando que o livre arbítrio não passa de uma mentira e que essa questão pra ele é mais clara que o sol (p.21).
Lutero começa examinando a obra de Erasmo refutando suas idéias acerca da compreensão das Escrituras, que para Erasmo são incompreensíveis, Lutero afirma isso a partir de uma má interpretação de Rm 11.33[3], onde Erasmo coloca as Escrituras no lugar de Deus. Lutero não concorda e diz que, Deus e a Escritura são duas coisas diferentes, não menos do que são duas coisas o Criador e a criatura (p.23). Lutero confessa que existem passagens obscuras na Escritura, contudo, ela que confessa a trindade de Deus, a humanidade de Cristo e o pecado irremissível.
O cerne da discussão entre Lutero e Erasmo é a vontade humana e a salvação de Deus, do que o livre arbítrio é capaz, o que sofre, de que modo se relaciona com a graça de Deus. Não se pode ignorar essa questão, pois é necessário saber diferenciar o poder de Deus e a nossa força, a obra de Deus e a nossa. Nisso está o conhecimento de Deus e o nosso. Erasmo em sua definição de cristianismo, segundo Lutero, afirma que devemos atribuir a Deus todo nosso bem, logo, afirma ao mesmo tempo, consciente ou não, de que a misericórdia de Deus faz tudo sozinha e que nossa vontade nada faz, mas antes sofre, nisso se encontra a maior contradição de Erasmo[4].
Lutero discute com Erasmo acerca da vontade de Deus, Erasmo coloca a vontade de Deus a mercê do arbítrio do homem, contudo, Lutero é enfático em afirmar que a vontade de Deus é soberana e age independente do ser humano. Deus age em prol do homem abatido e humilhado, ou seja, nas palavras de Lutero:

o homem não pode humilhar-se completamente enquanto não souber que sua salvação em nada depende de suas forças, desígnios, esforços, vontade e obras, mas totalmente do arbítrio, desígnio, esforço, vontade e obra de um outro, a saber, tão somente de Deus, pois enquanto estiver persuadido de poder fazer ao menos um pouquinho em prol de sua salvação, ele permanece na confiança de si mesmo e não desespera inteiramente de si; por esta razão não pode humilhar-se diante de Deus...”. (p. 46)

Lutero tem clareza quando descreve a condição do ser humano e sua vontade, que serve ou ao deus desse século, Satanás, ou serve a Deus, i, é; a vontade humana está colocada no meio como jumento, “Se Deus está sentado nele, ele quer e vai como Deus quer (...) Se Satanás está sentado nele, ele quer e vai como quer Satanás” (p. 49). É interessante notar que o jumento não está em condições de escolher, antes, os próprios cavalheiros o disputam. Para Lutero, afirmar que o homem tem livre arbítrio é a mesma coisa que divinizá-lo, é dar ao homem poder de interferi nas coisas superiores, espaço que está restrito somente a Deus, ou seja, Lutero até admite, com reservas é claro, que o ser humano tem livre arbítrio em questões tais como, suas faculdades e posses, o que comer e vestir, coisas do âmbito inferior. Para Lutero o ser humano está distribuído em dois reinos, um no qual ele é senhor e é conduzido pelo seu próprio arbítrio e conselho (inferior), no outro reino, ele não é deixado na mão de seu próprio conselho, antes é conduzido e amparado pelo conselho de Deus e também segue os mandamentos divinos.
A Diatribe sonha que o homem é íntegro, que pode cumprir as exigências das Escrituras, que, ao contrário, define o ser humano como corrupto e cativo. Aqui entra uma questão muito importante, Lei e Evangelho, Lutero deixa bem explícito a incapacidade de Erasmo em discernir essas duas grandezas presentes na Escritura. Pois Erasmo no intuito de provar biblicamente o livre arbítrio utiliza-se de muitas passagens da Escritura com imperativos, alegando que se os seres humanos não fossem capazes de cumprir tal ordem, Deus não as colocaria nas Sagradas Letras, contudo, Lutero rebate afirmando que essas passagens na verdade não querem dizer do que os seres humanos são capazes, e sim, do que são devedores. Lutero tem convicção ao afirmar que:

as palavras da lei são ditas não para afirmar o poder da vontade, mas para iluminar a razão cega, para que ela veja quão nula é sua luz e quão nula é a força da vontade. ‘O conhecimento do pecado vem pela lei (Rm 3.20); não diz que por ela vem a acolição ou evitação do pecado. Todo o sentido e força da lei consiste unicamente em proporcionar conhecimento apenas do pecado, mas não em conferir alguma força”(p.91)

E assim a discussão segue, Erasmo partindo do pressuposto de que o ser humano consegue cumprir os imperativos da bíblia e Lutero continua batendo na mesma tecla, ou seja, os imperativos tem a simples função de abrir nosso olhos soberbos e cegos, mostrando-nos o diagnóstico de nosso estado, pobre pecador, saco de vermes. Na verdade Erasmo esquece-se completamente da afirmação que fez, alegando que o livre arbítrio nada pode sem a graça, ou seja, ele mesmo derruba sua construção ao tentar impor a vontade humana autonomia quanto a salvação.

O ser humano jamais poderia voltar-se para Deus caso tivesse poder para salvar-se. Aliás, o livre arbítrio dispensa Cristo e o Espírito de Deus, pois porque Cristo haveria de morrer por seres que podem se auto-redimir? Ou ainda, porque o Espírito haveria de convencer do pecado e do juízo se está diante de uma criação autônoma? Parece que na visão de Erasmo, o ser humano tornou-se uma espécie de inteligência artificial, algo criado que não depende mais de seu criador para manter-se e salvar-se.

Contudo, a Escritura propõe um ser humano que não só está amarrado, mas cativo, enfermo e morto, e devido a ação de Satanás adquiri ainda uma cegueira sem tamanho, onde passa a crer que é livre, beato, solto, ser potente, são e vivo. Essa estratégia de satanás funciona, pois ele sabe que se o ser humano tivesse clareza quanto ao seu estado, ele não teria ninguém sobre seu domínio, pois todos correriam para a Cruz.

O que fica claro é que se o ser humano pratica algo de bom, só pode ser obra de Deus. O ser humano não faz coisa alguma, mas é todo feito, é puramente passivo. As riquezas do reino são oferecidas por meio do evangelho e não pelos poderes do livre arbítrio, a graça de Deus não exige obra, pois no Crucificado temos essa dádiva de sermos chamados filhos de Deus, filhos que agem de forma desinteressada para promoverem a glória de Deus, fazem o bem mesmo se não houvesse nem reino nem inferno. É interessante notar que o reino não está sendo preparado, já está preparado, porém, os filhos, esses sim estão sendo preparados para o reino, assim como Satanás prepara os seus para habitarem o inferno (p.111).
Deus é Deus! E age conforme quer, seu querer não exige causa ou razão que sirva como regra, pois Ele é soberano e tem seus mistérios que são ocultos ao ser humano, que só pode esperar a redenção do cosmos e juntamente com ele ser feito novo.

__________________
[1] discussão filosófica no latim tardio. Crítica acerba; escrito ou discurso violento e injurioso. Dicionário Aurélio séc. XXI.[2] As teses 13-15 deixam bem claro a posição de Lutero quanto ao livre arbítrio. 13 – Após a queda, o livre arbítrio é um mero título; enquanto faz o que está em si, peca mortalmente, 14 – Após a queda, o livre arbítrio tem uma potência apenas subjetiva para o bem; para o mal porém, sua potência é sempre ativa, 15 – O livre arbítrio tampouco pôde permanecer no estado de inocência pela potência ativa, mas sim pela subjetiva, menos ainda pôde progredir em direção ao bem. Obras Selecionadas v. 1, p. 38.[3] “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos”.[4] Segundo Lutero, o próprio Erasmo muitas vezes se contradiz e luta consigo mesmo em sua Diatribe, como se ela fosse degolada pela sua própria espada.

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