quinta-feira, 29 de maio de 2008

Imagem de Deus no horizonte da Ética – parte I

O que é Ética?
Antes de falarmos das implicações do ser imagem de Deus (ID) no campo da ética, se faz necessário responder a pergunta: o que é ética? A palavra ética vem do substantivo grego ethos/êthos que por sua vez deriva de êtho (estar habituado, se apropriar). Basicamente podemos afirmar que essas duas palavras significam: costume, hábito, podendo ainda significar caráter, mentalidade, índole.[1]Ambos os termos têm a ver com a formação da vida humana e/ou da postura interior que está por trás da vida”.[2] A palavra ética nasce, historicamente falando, nos escritos daquele que sistematizou a filosofia, Aristóteles (384-323 a.C.), contudo, antes dele, Sócrates é quem da início a ética ou filosofia moral. O Patrono da Filosofia perguntava aos atenienses o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir. Assim nasce a filosofia moral ou a disciplina denominada ética, no indagar o que são, da onde vêm e o que valem os costumes.[3]
Podemos então definir ética como a ciência que estuda a conduta/comportamento do ser humano diante da sociedade, exercendo seu papel na organização e preservação da vida. Teologicamente falando, podemos acrescentar a responsabilidade do ser humano diante não somente da sociedade, mas diante de Deus,[4] e nesse sentido, podemos então falar de uma Ética Cristã.

Ética Cristã e/ou Teológica.
A ética cristã se preocupa com as mesmas questões que a ética social: a preservação da vida, a postura do ser humano diante das leis que regem os Estados, etc. Contudo, a ética cristã (que é para os cristãos) vai além, pois olha para a criação e a sociedade a partir dos valores bíblico-teológicos, procurando colocar esse saber em prática no dia a dia. O crente em Jesus Cristo, como o ser humano que tem dupla cidadania, tem dupla tarefa: conservar e “salvar” a criação![5]
O sujeito/agente da ética cristã é o ser humano que descobriu sua identidade em Cristo e por ele foi regenerado, é o crente que vive a partir da realidade de que o ser humano é imagem e semelhança do Criador, ou seja, de Deus, o pai de Jesus Cristo.

Cópia de Deus: o ser humano como sujeito da ética.
A aplicação do conceito da imagem de Deus ao ser humano é o estatuto da igualdade humana e a constituição da humanidade em ‘sociedade’”.[6]
É necessário entendermos que a ID não é uma capacidade inerente ao ser humano, uma substância divina dentro de si, mas um atributo/status que lhe é conferido.[7] Como já foi exposto no artigo anterior (Copiazinhas nojentas de Si mesmo), a ID não pode ser reduzida à parte física nem à espiritual do ser humano, pois refere-se à totalidade da pessoa humana criada por Deus e “programada” para Deus.[8] Pode-se afirmar que a ID diz respeito a uma estrutura antropológica, uma vocação. “O ser humano é um ente de estrutura relacional, é personalidade que na comunhão com Deus encontra a razão de sua existência e seu verdadeiro destino.” [9]
Ao conferir dignidade ao ser humano mediante a ID, Deus faz do ser humano seu parceiro na manutenção e administração da criação, por isso, podemos afirmar que o ser humano é criação de Deus, porém distinta do resto dela, pois é a única criatura com esse status: Imagem e semelhança de Deus. Ser ID significa ter responsabilidade diante si mesmo, de Deus c do próximo. Mesmo após a queda o ser humano continua sendo ID, contudo, com alterações, pois se nada mudasse com a queda, não haveria necessidade de conversão e regeneração. Em relação ao ser humano caído BRAKEMEIER dispara: “o ser humano é um misto de anjo e fera, de coisa insignificante e preciosidade, de imagem de Deus e do demônio”[10].
O fato de ainda ter a noção do certo e do errado, poder fazer o bem ao próximo, é sinal da ID no ser humano, e isso tem implicações éticas.

Continua...

____________
[1] Nesse artigo nos apoiaremos basicamente na obra de WIESE, Werner. Ética fundamental: critérios para crer e agir. São Bento do Sul: União Cristã. 2008. p. 21. Recomendo esse livro, pois é fruto do labor teológico de um homem temente a Deus e profundo conhecedor do Novo Testamento.
[2] BURKHARDT, apud. WIESE, Werner. op., cit. p. 21.
[3] CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2004. p. 310-11.
[4] WIESE, Werner. op., cit. p. 23.
[5] Ibid,. p. 29.
[6] BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. São Leopoldo: Sinodal: São Paulo: Paulus. 2002. p. 21
[7] Ibid. p. 20.
[8] WESTERMANN, apud. WIESE, Werner. op., cit. p. 64.
[9] BRAKEMEIER, Gottfried. O ser humano em busca de identidade. São Leopoldo: Sinodal: São Paulo: Paulus. 2002. p. 20.
[10] Ibid., p. 47.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Copiazinhas nojentas de si mesmo...

O livro de C. S. Lewis, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, apresenta uma troca de correspondências entre um tentador sênior, Screwtape (Criação de Lewis, combinação entre “verme” e algo que se enrola sobre si mesmo), e seu protegido, Wormwood (cupim).[1]

Neste trecho, que reproduzo na íntegra, Screwtape revela as intenções do Inimigo (nessas cartas o inimigo é Deus).

“Agora, uma coisa que pode surpreender você é o fato de que o Inimigo, em sua luta por conquistar almas, Ele as mantém às vezes por mais tempo nos vales desagradáveis que nos picos gloriosos. E alguns de Seus favoritos especiais são exatamente os que passam por aflições mais profundas e prolongadas.
A razão é essa: Para nós, um humano é primariamente comida; nossa meta é a absorção de sua vontade pela nossa, é aumentar nosso ego as custas dele.
Mas a obediência que o Inimigo requer deles é uma coisa totalmente diferente. Temos que encarar a realidade de que tudo que se fala a respeito de Seu amor pelos homens e sua obra de proporcionar perfeita liberdade não é (como gostaríamos de acreditar sorridentes) mera propaganda, mas uma aterradora realidade. Ele realmente quer encher o Universo com um monte de copiazinhas nojentas de Si mesmo – criaturinhas cujas vidas em uma escala miniaturizada seriam qualitativamente como Ele próprio, não porque Ele as tivesse absorvido mas porque suas vontades livres eram semelhantes à dEle. Nós queremos criar gado que finalmente nos sirva de alimento; Ele quer servos que mais tarde converterá em filhos. Nós queremos sugá-los, Ele quer premiá-los; Nos somos vazios e queremos nos encher através deles, Ele é pleno e assim transborda.
Nossa guerra visa um mundo no qual Nosso Pai Lá de Baixo tenha todos os demais seres encerrados nele mesmo; O Inimigo deseja um mundo cheio de seres unidos a Ele, mas ainda distintos e pessoais.”

O ser humano foi colocado no mundo como símbolo da própria soberania de Deus. Os grandes reis do Antigo Oriente, costumavam mandar erguer nos seus reinos efígies de si mesmos, que os representassem, como símbolos de sua soberania. Foi nesse sentido que Israel compreendia o ser humano como imagem e semelhança de Deus.[2]
Não existe nenhuma palavra que explique diretamente no que consiste a imagem de Deus nos ser humano. Nos termos selem (imagem, estátua) e dmut (igualdade, algo como) onde o segundo interpreta o primeiro ao salietar a noção de correspondência e de semelhança, não se aponta somente para a natureza espiritual do ser humano, mas também para sua natureza física, ou seja, o ser humano na sua integralidade para o desempenho de seu papel.[3]

O que significa ser imagem de Deus e suas consequências éticas é assunto para semana que vem...

Paz a todos
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[1] KLEIN, Patrícia S. Um ano com C.S. Lewis: leituras diárias de suas obras clássicas. Viçosa: Ultimato, 2005. p. 23.
[2] RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: ASTE/TARGUMIM, 2006. p. 145.
[3] RAD, Gerhard von. Op. cit., p. 143.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Com a palavra John Stott

Caros leitores, confesso estar sem inspiração hoje, mas como tenho o compromisso de atualizar o Blog toda segunda-feira, deixo para vossa reflexão as meditações de John Stott no devocionário A Bíblia Toda, O Ano Todo da Editora Ultimato.[1] (http://www.ultimato.com.br/)



A veracidade da narrativa do Gênesis

Depois disse Deus: “Haja [...]”. E disse Deus: [...].
E Deus viu que ficou bom.
GÊNESIS 1.6, 9-10

Muitos alegam que há paralelos surpreendentes entre os mitos da criação do antigo Oriente Próximo (especialmente o épico babilônico conhecido como “Enuma Elish”) e o relato bíblico da criação citado em Gênesis 1. Porém, o que é mais notável em relação aos babilônios e às histórias bíblicas não são suas semelhanças, mas suas diferenças. Longe de copiar a narrativa babilônica, Gênesis 1 critica e faz objeção a sua teologia básica. Na mitologia babilônica, os deuses, amorais e caprichosos, disputam e brigam uns com os outros. Marduk, o mais soberbo dos deuses, ataca e mata Tiamat, a deusa-mãe. Em seguida, ele divide o corpo dela em duas metades, sendo que uma delas se transforma no céu e a outra, na terra. A julgar por este cruel politeísmo, é um alívio retornar à ética monoteísta de Gênesis 1, segundo a qual toda a criação é atribuída ao
comando do único e verdadeiro Deus. De acordo com o livro do Apocalipse, a adoração eterna no céu concentrase no Criador:
Tu, Senhor e Deus nosso, és digno de receber a glória,
a honra e o poder, porque criaste todas as coisas,
e por tua vontade elas existem e foram criadas.
APOCALIPSE 4.11
Os cientistas continuarão a investigar a origem, a natureza e o desenvolvimento do universo. Porém, teologicamente falando, para nós basta saber que Deus criou todas as coisas por sua própria vontade, como expressão de sua simples e majestosa Palavra. Por isso é que se repete o refrão de Gênesis 1: “E Deus disse...”. Além disso, quando Deus contemplou sua criação, ele “viu que ficou bom”.


Devemos, portanto, nos alegrar por tudo que Deus criou — tanto pela comida e bebida como pelo casamento e pela família, ou pela arte e pela música, pelos pássaros, pelos animais, pelas borboletas e por muitas outras coisas. Pois tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças.
1 TIMÓTEO 4.4
Para saber mais: Jeremias 10.12-16

É bom saber que não somos escravos dos deuses, criados com o propósito de prestar sacrifícios e adoração somente, ou que o mundo em que vivemos é fruto da luta entre dois deuses, mas que somos criados a imagem e semelhança do Criador para com ele nos relacionar e que o mundo em que vivemos é fruto da ordem do caos, criado para ser nosso lar.




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[1] STOTT, John. A Bíblia toda, o ano todo: meditações diárias de Gênesis a Apocalipse. Viçosa: Ultimato, 2007. p. 17.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

"Somos os Edmundos de Cristo"

Justificação por graça e fé

Você já teve a impressão de que está o tempo todo sendo julgado? Essa pergunta é resultado do fato de que, a todo momento estamos diante de uma espécie de tribunal ambulante, ou seja, as vezes somos o juiz, as vezes somos o réu, as vezes somos o promotor (na maioria das vezes). Essas três dimensões permeiam nosso dia-a-dia. É só você pensar nas sentenças que distribuímos aos que nos cercam, quantas recebemos e assim a vida segue, um julgando o outro. Já percebeu o quanto nos justificamos para explicar nossas atitudes, por que temos que nos justificar o tempo todo? A resposta está no fato de não sermos autônomos. Cada indivíduo é formado socialmente, é fruto do julgamento de outras pessoas sobre ele bem como do julgamento que faz de si mesmo. Eu vivo me justificando, vivo querendo garantir minha existência.
E o fato de vivermos a partir dessa auto-justificação, desse esforço humano em subsistir, temos dificuldades em entender o que Deus fez por nós na cruz!

Paulo afirma que independente da Lei, ou das obras da Lei (aquilo que exige algo de mim) Deus manifestou a sua justiça (Rm 3.21-24). Deus nos amou mesmo nós sendo seus inimigos. Eu e você não somos pecadores por que pecamos, mas o contrário é verdadeiro, pecamos por que somos pecadores, nossa natureza é contra a vontade de Deus, o velho Adão em nós luta por independência. O pecado é uma realidade em meu ser que me afasta do Criador. E sabe o que é o pior? Enquanto vivermos aqui, seremos pecadores na totalidade de nosso ser. Então, temos um problemão nas mãos, por que a Bíblia diz que devemos ser santos assim como Deus é santo. É aqui que começa nossa batalha, pois como somos frutos de nosso tempo, onde impera a auto-justificação, eu aplico isso na minha caminhada de fé. Quero me justificar perante Deus, quero com meu esforço conquistá-lo. Esse labor em querer se justificar perante Deus só nos conduzirá à frustração. Pois tudo o que faço é marcado pelo pecado e isso me priva da glória de Deus, ou seja, me priva da presença de dEle. Glória no sentido bíblico é a presença de Deus comunicando-se ao homem de modo cada vez mais íntimo.

Se a história acabasse assim, estaríamos muito mal. Pois o salário do pecado é a morte. Mas é nesse momento que entra a justificação como ato salvífico de Deus. Justificação é levar a culpa no lugar do outro, é sofrer a pena que era destinada ao condenado. O filme inspirado na obra de C. S. Lewis As Crônicas de Nárnia, ilustra essa realidade, onde Aslan assume a culpa no lugar do traidor Edmundo e morre sobre a mesa da pedra branca. Surge a pergunta, o que Edmundo fez para merecer tal benefício? A resposta é simples e curta, nada, ele não fez absolutamente nada. Lewis entendeu a cruz de Cristo muito bem e tentou de forma metafórica passar essa mensagem. Nós somos os Edmundos de Cristo. Quando falo de justificação, lembro do ladrão da cruz, o que aquele sujeito fez para estar no paraíso com Cristo? Em última análise, nada. Quem sabe você possa pensar, mas ele confessou que Jesus era o Cristo. Muito bem, isso é verdade, a justificação só acontece mediante a fé, e qual a origem da fé?

As palavras chaves para nossa compreensão da justificação operada por Deus em nosso favor encontramos em Romanos 3.21-24: 22 – justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos aqueles que crêem... 24 – e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus... para se ter esse novo status perante Deus, o status de justo, é necessário ter fé, pois a justificação acontece na dimensão da fé. Nos não podemos produzir essa justificação. A fé é uma obra de Deus em nós, que nos transforma e nos faz renascer de Deus (Jo 1.13). Nosso reformador Lutero tinha clareza acerca da justificação a partir da fé. Ele afirmava que a fé justificadora é obra unicamente de Deus, assim a fé sobrevêm ao ser humano, onde a pessoa a experimenta ao sofre-la. Dizia ainda que a experiência da fé é dolorosa: “Quem ainda não foi destruído até os fundamentos, reduzido a nada pela cruz e pelo sofrimento, atribui as obras e a sabedoria a si mesmo e não a Deus, todavia, quem foi exinanido pelos sofrimentos já não opera mesmo, mas sabe que Deus quem nele opera e tudo realiza, é isto que Cristo diz em João 3.7 : vocês precisam nascer de novo... para nascer de novo, no entanto, é necessário primeiro morrer”.*

Deus mata para fazer viver. Em Cristo somos simultaneamente justo e pecador, nele experimentamos as benesses do Reino de Deus, que ainda não se concretizou em sua plenitude, mas um dia acontecerá, e seremos integralmente justo e santo e estaremos com o Senhor para sempre. Amém!

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* BAYER, Osvald. Viver pela fé. São Leopoldo: Sinodal, 1990.

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