segunda-feira, 23 de junho de 2008

O Ser Humano Deificado: sua realidade nua e crua


Texto realizado em parceria com Israel W. Sell.


Desde o relato da criação a presença do homem é atribuída diretamente a Deus. Tanto é, que ao criá-lo a Bíblia usa o verbo barah (“criar”), verbo usado apenas quando se trata da criação de Deus no AT (Gn 1.27; 5.1; 6.7), e também o verbo yasar (“formar”), conforme Gn 2.7-8. Desta forma o homem é levado a uma existência dualista de relacionamentos, com a natureza e com o próprio Deus, afinal de contas do pó da terra é formado (yasar) o homem (relação com a natureza) e pelo fôlego de Deus é criado (barah)[1].
Desta forma temos os dois lados na questão relacional do ser humano, a relação com a natureza e a relação com o Deus criador. Por mais profundo que seja a relação entre a natureza e o homem[2], não vamos nos deter a este assunto, mas daremos maior ênfase na questão relacional homem-Deus.
Nos relatos de Gênesis temos a impressão de que o enfoque da criação de Deus era o ser humano. O ser humano como coroa da criação de Deus. Toda a criação anterior ao homem foi feita para o usufruto do ser humano, tudo foi criado para sustentar o homem. “Desta forma, embora o homem esteja diante de Deus num relacionamento de dependência criada, ele também desfruta da condição de uma personalidade sem igual e especial em relação a Deus[3].”
Todo este relacionamento especial do homem para com Deus parece ser quebrado com a queda do ser humano. Rompe-se uma parte deste elo, por causa do primeiro pecado de Adão[4]. Pecado este que foi ser igual a Deus, ter o conhecimento de Deus, discernir entre o bem e o mal.
Adiante no livro de Gênesis podemos notar a conhecida história da torre de Babel, onde a hermenêutica tradicional interpreta da seguinte forma: os homens se reúnem para fazer uma torre que chegue aos céus, o que quer dizer que o homem quer colocar-se no lugar de Deus, o homem quer “deificar-se”. Mas será que esta seria uma interpretação correta, ou uma interpretação completa? Talvez não seja esta a melhor interpretação a ser feita, há quem diga[5] que nesta história há diversos temas por trás, mas um deles está diretamente ligado a nossa temática, que é o agir de Deus intervindo nos planos soberbos dos seres humanos, que vêem a cultura urbana como um centro imperialista. Desta forma a “torre do assalto humano ao céu” chama a atenção de Deus, de modo que Ele mesmo desce para olhá-la. “A subida acaba em caída, a concentração em dispersão, o nome famoso em nome infamante[6].”
Saltando alguns séculos, analisemos a visão antropológica de Paulo. Ao falar de antropologia paulina, geralmente se fala de sua teologia soteriológica. Em primeiro lugar Paulo insiste em dizer que o ser humano necessita da graça de Deus, é enfático quanto à universalidade do pecado do homem. Com isto como base, Paulo faz a analogia do velho e do novo Adão, ou seja, por Adão entra o pecado no mundo, onde “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Para Paulo, o homem é um ser moral “com um senso inato de certo e errado, ao qual Paulo se refere como sendo sua consciência (21 vezes)[7]”. Porém, esta consciência pode perder sua sensibilidade para o bem e tornar-se “cauterizada” (1 Tm 4.2) ou ainda “contaminada” (1 Co 8.7).
O que acontece quando esta consciência se contamina ou acaba por cauterizar-se? A melhor resposta talvez seja a perícope de Rm 1.18-32. Não queremos aqui entrar em questões ligadas à lingüística ou à estilística desta perícope, mas observar um pouco mais a antropologia paulina quando não está ligada diretamente à sua soteriologia.
Já de início temos um resumo do mundo gentio (holístico?)[8]. É claro que os gentios, como seres humanos, também são seres morais, mas escolheram viver suprimindo a verdade (NVI). Com incontáveis maldades[9] eles martelam sua consciência, que agora está contaminada, ou cauterizada. É com este modo de vida que se levanta a ira de Deus, que se revelando aos seres humanos de forma natural[10], sobre essa percepção de verdade e justiça, que abandona o amor e a alegria[11].
De forma concreta podemos dizer que o ser humano pode filmar uma planta crescendo em todas as fases de sua vida, explicar sua função, estudar sua cadeia química, podemos reproduzi-la de maneira incrível, e podemos até destruí-la. Porém, criá-la é algo que não podemos fazer. E uma simples plantinha nos demonstra o que não podemos fazer e o que não somos, a saber, criadores[12]. Somos limitados, necessitamos de misericórdia dia após dia, isto se dá como, por exemplo, na doença, mas principalmente na morte. Além destas coisas, outras tantas estão longe de nós, como a busca pela imortalidade, a busca pelos mistérios da vida, que podem ser resumidas em duas perguntas que, enquanto seres humanos carnais, continuarão sem resposta: Quem eu sou? e; Para onde vou?
Paulo afirma que os gentios têm o conhecimento de Deus, sabem das reivindicações de que ele é Senhor e também sobre suas responsabilidades. “As pessoas sem dúvida alguma tinham a possibilidade de se portarem corretamente perante Deus... o condenado não pode alegar desconhecimento. Não pode evadir-se[13]”.
Os homens “tendo o conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças”. Ao invés de honrar e glorificar a Deus, tais pessoas negam sua condição de criaturas e principiam a ascensão para serem super-humanas, assim, criando-se (barah) semelhantes a Deus. Este versículo ainda nos dá a conotação de ingratidão dos seres humanos (gentios?). Quando não agradecemos a Deus pelo bem que ele nos concedeu, rapidamente o esqueceremos e seremos dominados por “autocomiseração sentimental”. Assim, parece que quem tem de pedir desculpas é o próprio Deus[14].
Esta mentalidade deturpada de Deus e de si mesmo faz estourar uma “podridão interna” da sociedade humana, que POHL divide em três unidades de pensamento[15]:
- Exaltar-se acima de Deus leva à queda para a tolice indescritível da idolatria (vv. 22-24);
- Desonrar a Deus conduz a deplorável amor próprio (vv. 25-27);
- Falta de gratidão a Deus leva a uma sociedade que despreza as pessoas e que se destrói a si própria (vv. 28-32).
Deus é um Deus de vida, e também é o protetor da vida, por isto sua ira é aceitável, afinal de contas, onde a vida é prejudicada, a ira de Deus se ascende. Isto se dá a negativa de honrar a Deus e à idolatria dela decorrente, desrespeitando, assim, o primeiro mandamento.
Neste trecho poderíamos esperar que Deus entregasse o homem aos poderes de Satanás ou de demônios, porém, eles são entregues a si mesmos, talvez até pior que estar sob os poderes de Satanás e seus demônios. Os homens são entregues à concupiscências de seus corações (v. 24), às paixões infames (v.26), a uma disposição mental reprovável (v.28), ou seja, Deus os entregou às suas vontades, seus desejos. Deus não faz cair fogo do céus, nem faz chover canivetes, Deus entrega os tijolos e o cimento na mão do homem para que ele reconstrua a torre de Babel.
Isto geram conseqüências e também potências geradas pelas deliberações humanas. Eles começam a prejudicar-se entre si (vv. 29-30). E isto, eles consideram belo, “viver sem Deus”, mas em Deus é posta a culpa pela humanidade que sofre. Aqui cabe dizer que o mundo só não virou um verdadeiro inferno porque a mão de Deus se mostra no curso da humanidade, tanto é que a obra salvífica de Deus se encontra no meio da conturbada história humana, a saber Jesus Cristo, o logos vivo de Deus.
A lógica correta seria que o ser humano desse honras a Deus, mas quando se trata da deificação do homem esta lógica se inverte. As pessoas não suportam viver sem um deus, tem de se ajoelhar perante algo, pois foi o próprio Deus quem criou o ser humano para ter uma relação consigo. O ser humano precisa de algo que seja maior que ele, precisa de um ser superior[16]. Assim, o ser humano põe um objeto criado, um “elemento do cosmos” (Gl 4.3, 8-10), acima de si, e mais uma vez, desrespeitando o primeiro mandamento. Esta é a idolatria, e suas muitas variações, onde objetos/pessoas são elevados ao patamar de Criador e são divinizados. O homem vive em torno deste(s) ídolo(s), e o quanto mais longe do Deus verdadeiro e Criador, tanto melhor.
Alguns ídolos são talhados em troncos, onde uma imagem de homem corruptível, ou de aves, quadrúpedes e répteis são adorados. Isto deveria soar mal, pois imagine, os seres humanos incumbidos de serem representante de Deus na terra, ajoelham-se diante de répteis, seres criados para rastejar. Ou seja, o homem rasteja perante o ser feito para rastejar! Mudaram a glória do Deus incorruptível!





continua...


_____________________
[1] H. D. MaCDONALD, Homem, Doutrina do. in Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. p. 259.
[2] Muitas coisas pertinentes a este assunto poderiam ser aqui discutidas, como o “castigo” dado à terra e aos animais (em especial a serpente) em virtude da queda do ser humano. Ainda a redenção do ser humano regozijada pela terra (Is 11.6-9). A natureza feita para servir ao homem, entre outros temas associados à relação homem-natureza.
[3] H. D. MaCDONALD, op. cit. p. 259.
[4] Entenda-se aqui tanto o lado singular, quanto o lado coletivo que o hebraico adam significa.
[5] L. A. SCHOKEL, Bíblia do Peregrino. p. 29.
[6] Ibid.
[7] H. D. MaCDONALD, op. cit. p. 261.
[8] Não queremos aqui dizer que os judeus estão livres das acusações a seguir, afinal de contas, eles já ouviram isto diversas vezes, de diversas formas, de diversos profetas. Ainda lembramos que a ira de Deus dirigida ao povo judeu está na seguinte perícope (Rm 2.1-3.8).
[9] Isto é dito tendo por base o v. 18, onde temos “toda impiedade” denotando um número alto de violações.
[10] Entenda-se aqui a revelação de Deus por meio da natureza, revelação da bondade da criação de Deus.
[11] Adolf POHL. Carta aos Romanos, comentário esperança, p. 42-43.
[12] Ibid. p. 44.
[13] Wiard POPKES. Aufbau, in Adolf POHL. op. cit. p. 45.
[14] Adolf POHL. op. cit. P. 45.
[15] Ibid. p. 46-49.
[16] Ibid. p. 48.

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