Por Fernando Albano
No Evangelho de Marcos observamos uma verdadeira teologia da cruz. Há uma notável identificação de Deus com a fraqueza e miséria humana. O Messias é alguém que sofre na cruz (Mc 9.9-10; 15.39), portanto, é um servo sofredor; algo paradoxal para a figura do Messias triunfante e poderoso conforme entendida pelo Judaísmo da época (Is 53.1-7). Nesse sentido, a teologia da cruz em Marcos fundamenta-se na identificação divina com o sofrimento humano. O amor e a justiça de Deus conduzem Jesus à cruz. É na cruz que ocorre a maior revelação de Deus: o pecado é apresentado como algo terrível que resultou na morte do Filho e, além, disso ficou comprovado o amor de Deus. “Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8).
Em tempos de confusão doutrinária e igrejas-empresas, comprometidas com a conhecida “Teologia da Prosperidade”, parece-nos salutar atentar para a realidade dura e crua, como Marcos nos apresenta a revelação de Deus. Deus não se revela plenamente por intermédio de bênção e milagres, mas sim na terrível cruz.
Vale considerar que, se o Filho de Deus obteve fim tão trágico, ainda que tenha sido por nossos pecados, o que não poderá suceder aos seus discípulos? “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa e pelo evangelho, a salvará” (Mc 8.34-35).
Marcos enfatiza a morte de Jesus em boa parte de seu evangelho. Mais ou menos um quinto do seu conteúdo é dedicado à morte e ressurreição de Cristo (1). Marcos não deixa dúvidas de que a cruz é central em seu livro. E, como vimos esta morte de Jesus tem implicações para o discipulado cristão, especialmente no que tange a morte do nosso ego. Contudo, não foi apenas para se identificar conosco e nos dar exemplo, que Cristo assumiu a condição humana e morreu, mas principalmente para expiar (2) a nossa culpa. De acordo com Marcos, o pecado da humanidade foi o principal motivo da morte e ressurreição de Jesus Cristo (Mc 8.31; 14.31).
A morte de Jesus não ocorreu apenas por que ele atacou as estruturas religiosas da época; por que em sua vida demonstrou aspectos revolucionários que teriam motivado o desfavor do império romano, resultando em sua condenação à morte. Estes aspectos, apesar de serem verdadeiros não constituem o motivo central da morte de Jesus. Acima de tudo sua paixão cumpre com o desígnio redentor de Deus. Sua morte tem efeito vicário, isto é, Cristo morreu em lugar do pecador, segundo o desígnio de Deus.
Infelizmente, há teólogos que negam a necessidade da morte de Jesus para a efetivação da reconciliação. Ensinam que Jesus não teve que morrer para que Deus pudesse perdoar os homens. Deste modo, minimizam o conceito de “ira de Deus”, claramente exarado nas Escrituras (Rm 1.18; Mt 23.33; Jd 14,15).
Para Marcos a morte de Jesus não era comum. No Calvário aconteceu algo significativo para a humanidade. Além de Jesus morrer em lugar do ser humano pecador, sua morte tem um caráter de resgate: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (10.45). Segundo Morris:
Resgate era o termo relacionado com o preço pago para libertar um prisioneiro de guerra, um escravo ou alguém sentenciado à morte. Ele não diz do que está libertando as pessoas, mas, no contexto deste evangelho, claramente se trata de liberdade do pecado e de uma vida pecaminosa. Essa liberdade não vem de modo fácil ou automático. Ela tem um preço, e Jesus pagou esse preço. (3)
De acordo com o evangelista, este resgate está intimamente ligado ao ato de Jesus beber do “cálice”, que representa o sofrimento da punição retributiva (14.36). Isto de conformidade à vontade de Deus. Na última ceia, Jesus deixou bem claro, que o pão e o cálice representam o seu corpo e sangue que seria “derramado em favor de muitos” (12.22-24) (4). Deste modo, parece irrefutável que Marcos defende a ideia de que a morte de Jesus não foi algo acidental, mas realização do propósito de Deus e, que o próprio Jesus estava consciente disto. Convém destacar que Paulo, o primeiro teólogo da Igreja primitiva já defendia tais conceitos (1 Co 15.3-4) (5). Definitivamente Jesus pagou o preço do resgate da humanidade, e, isso faz parte do propósito de Deus. (6)
Para a Igreja primitiva, a interpretação da cruz como fazendo parte do projeto de Deus foi de fundamental importância para acreditar em Jesus ressuscitado. Não há dúvidas de que as comunidades cristãs entenderam a morte de Jesus na cruz como mediação para reconciliar a humanidade com Deus (Rm 5.6,10; 14,15; 1 Co 8.11; 2 Co 5.18-19), libertando-nos da lei (Gl 3.13). A teologia de Marcos vai nesta direção, de tal modo, que pode perfeitamente ser denominada de “teologia da cruz”.
Isto posto, hoje, as igrejas comprometidas com a Bíblia devem alçar a bandeira da “teologia da cruz”, e seguir pregando o Evangelho que cura, liberta, abençoa, mas que também chama para a renúncia, morte do ego, enfim para a cruz.
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1 - MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. p. 117.
2 - Expiação em sentido religioso, como era compreendida em todo o mundo antigo, pressupõe que o mundo está sujeito a uma ordem cuja não observância é castigada pelos poderes supra-mundanos. Somente a expiação, portanto, pode romper uma reação em cadeia de pecado e desgraça.GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Teológica, 2003. p. 210.
3 - MORRIS, 2003, p. 132-33.
4 - Vale ressaltar que, as comunidades cristãs conheciam muito bem a ceia. Deste modo, o evangelista Marcos ao realçar a relação da ceia com o salvador, contribui para livrar o rito cristão de ser compreendido como mera mecânica litúrgica.
5 - Segundo especialistas, os escritos do apóstolo Paulo (anos 50 do século I) antecedem os Evangelhos. Cf. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 58.
6 - A quem Jesus pagou o preço do resgate da humanidade? Alguns afirmam que Jesus pagou ao diabo. Mas esta interpretação é completamente equivocada, pois a humanidade pecou contra Deus, logo, a dívida diz respeito a Deus e não ao diabo. Portanto, Jesus quitou a nossa dívida junto à justiça divina (Cf. 1 Jo 4.10). Por outro lado, hesitamos em falar em pagamento de “resgate” a Deus Pai, porque não era ele que nos mantinha como escravos, mas sim nossos próprios pecados.
7 - GASS, Ildo Bohn. Uma introdução à Bíblia: as comunidades cristãs da primeira geração. São Leopoldo: CEBI; São Paulo: Paulus, 2005. p. 38-39.
2 comentários:
Maravilhosa mensagem da cruz, neste assunto há uma boa pregação no CD Livres Pra Adorar.
Não sou mais eu quem vivo, mas Cristo quem vive em mim.
Belíssimo texto este seu, meu amado irmão Fernando Albano, fruto de uma mente privilegiada. Deus continue te abençoando,
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