Ao longo da história o homem buscou essa parceria com Deus (deuses), até o momento em que quis ocupar o lugar dele. Deificação diz respeito ao processo cerimonial, religioso ou social mediante o qual o ser humano (ou sociedade) eleva-se acima de si mesmo, até a divindade. Na antigüidade os reis eram considerados filhos dos deuses, as vezes eram chamados de deuses (Alexandre, o Grande) outros se intitulavam deuses, como Antíoco Epifânio.[1] Depois temos os imperadores romanos, que ao morrerem eram oficialmente deificados, porém alguns já exigiam adoração em vida (Calígula, Nero e Domiciano), sendo que essa prática só parou com Constantino.
Vemos de certa forma a deificação do ser humano (a torre de babel novamente sendo construída) na evolução do pensamento humano. No pensamento humanista-renascentista, o homem era considerado artífice de si mesmo, podendo ser um só espírito com Deus.[2] Podemos pular lá para o século XVIII, onde o voluntarista Nietzsche declara no “evangelho” de Zaratustra: “Deus está morto”. Para ele o homem não pode desenvolver seus valores enquanto acreditar na existência de Deus.[3] Ainda que Nietzsche repreenda a moral religiosa de sua época, sua filosofia coloca o homem na posição de deus de si mesmo, o homem como sendo seu auto-redentor. O que dizer da declaração do materialista Feuerbach em sua obra A essência da religião? Ele diz: “a divindade do homem é o escopo final da religião”.[4]
Olhando agora para a pós-modernidade vemos o ser humano proporcionando salvação e eternidade a partir do laboratório. Em seu livro Brincando no Paraíso Perdido, Euler R. Westphal afirma que existe na ciência pós-moderna uma dimensão religiosa muito forte, principalmente no âmbito da biotecnologia, que domina o patrimônio genético, dessa forma, ela tem o poder de decidir sobre a vida e a morte das pessoas, inclusive atender a encomendas, um filho conforme o desejo dos pais. Analisando o livro Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, ele afirma que temos a ditadura científica representada com muita propriedade. Nesse admirável mundo novo os cientistas são chamados de “predestinadores”, ou seja, aqueles que decidem sobre a usina humana, sobre os destinos dos embriões. A eternidade é possível a partir do laboratório.[5]
Vemos aqui a dominação da ciência como uma grandeza religiosa, pois ela promete a salvação eterna através da saúde perfeita. Um mundo sem dor e sem a possibilidade da morte, um mundo seu Deus.
Contudo a realidade do ser humano é dura, e sua história tem demonstrado que ele não sabe lidar com o poder, pois o exercício do poder revela quem de fato uma pessoa é. E o que é o ser humano senão uma criatura pecadora, carente e com saudades do paraíso? Ao mesmo tempo em que os avanços tecnológicos impressionam, eles assustam, pois cura e arma biológica provém do mesmo arsenal científico.[6] O homem está trilhando um caminho sem deixar migalhas de pão para poder voltar. A bioética é uma tentativa de imprimir responsabilidade às ciências que se ocupam com a vida, mas a pergunta que fica é: será que a bioética está cumprindo seu papel? Será que alguém tem a resposta? Uns visam o lucro, outros visam a vida, diante duma sociedade capitalista quem será que fala mais alto?
O ser humano deificado vive a mercê de si mesmo. Vive sem espelhos para enxergar a realidade que está criando, ele está como uma criança que ganhou um brinquedo novo, ele está empolgado com o poder criador, ele está iludido e desesperado. O ser humano deificado não sabe ser Deus.[7]
[1] R. N. CHAMPLIN; J. M. BENTES, Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, p. 37. Os monarcas egípcios eram considerados divinos, quem sabe Epifânio adotara essa prática para si.
[2] G. REALE; D. ANTISERI, História da Filosofia, v. 2, p. 82. Leia na íntegra o discurso de João Pico de Mirândola na página 13.
[3] B. MONDIN, Curso de Filosofia, v. 3, p. 75-82.
[4] B. MONDIN, Curso de Filosofia, v. 3, p. 94.
[5] E. R. WESTPHAL, Brincando no paraíso perdido, p. 31-48.
[6] G. BRAKEMEIER, O ser humano em busca de identidade, p. 129.
[7] Nos vem a mente o filme Todo Poderoso, com Jim Carrey, que vive um jornalista frustrado que recebe temporariamente os poderes de Deus. O resultado é catastrófico, pois ele só recebeu os poderes de Deus e não sua sabedoria.